O (im)possível eixo franco-alemão

Para o bem ou para o mal, consoante as perspectivas, Angela Merkel tornou-se uma figura central da política alemã e europeia dos últimos doze anos.

1. O eixo-franco alemão irá impulsionar de novo a União Europeia. Esta é a convicção e esperança de muitos, após a eleição de Emmanuel Macron para a presidência francesa. No entanto, o rumo dos acontecimentos pode muito bem ser outro. A União Europeia de hoje é substancialmente diferente das Comunidades que surgiram nos anos 1950. O eixo franco-alemão, que se inicio sob a liderança política francesa, é um símbolo do passado da segunda metade do XX. Apesar desse quadro mental permanecer em muitos, nada indica que seja repetível. É verdade que foi decisivo para o sucesso das Comunidades nos anos 1950 e seus desenvolvimentos posteriores. É também verdade que captava o funcionamento da União Europeia até um passado relativamente recente. Até aos anos 1990 era aí que tinham origem os impulsos políticos decisivos para os avanços do processo de integração. Mas a criação de uma moeda única europeia, o euro, foi a última manifestação onde a primazia política da França ainda foi visível: Jacques Delors e François Miterrand deram um impulso decisivo à integração monetária europeia. O resultado, ironicamente, foi adverso para as ambições francesas. A Alemanha, que já era economicamente importante, tornou-se a partir daí — e de forma muito evidente após a crise da Zona Euro —, o centro da decisão política. Foi o fim de uma era onde a Alemanha fundamentalmente pagava os custos da ambição política francesa de integrar a Europa à sua maneira. O protagonismo francês coexistia com um deliberado low-profile alemão, que o estigma da II Guerra Mundial e o passado do nazismo aconselhavam.

2. Na União Europeia do século XXI poderemos voltar a ter um eixo franco-alemão impulsionador da integração? Não sabemos, mas a existir provavelmente será germano-francês. A questão não é semântica. Nem se trata de um mero jogo de palavras, ou de saber se há melhor ressonância na expressão "eixo germano-francês". É, desde logo, um problema de poder, de primazia política e de liderança na União Europeia. Neste início de século XXI, a França é um parceiro júnior da Alemanha, não o líder sénior dos primeiros tempos das Comunidades, com uma primazia sem contestação, nem sequer um parceiro genuinamente paritário. No entanto, manter a ficção da continuidade de um eixo franco-alemão, como no passado, pode ser algo conveniente para ambas as partes. Emmanuel Macron fez do relançar da União Europeia — e do papel de liderança da França — uma parte importante do seu discurso político. Criou expectativas elevadas, entre os franceses e europeístas em geral. Vai precisar de mostrar resultados e, para isso, necessita da Alemanha. Quanto à Alemanha, por sua vez, tem interesse em que a sua liderança não se torne demasiado ostensiva e vista como unilateral. As feridas da crise da Zona Euro e dos refugiados ainda estão abertas. Os ressentimentos do passado contra a Alemanha podem facilmente ressurgir. Assim, Angela Merkel poderá querer também alimentar a ilusão francesa de um eixo-franco alemão, como no passado. Naturalmente que a coberto desta parceria — ilusória sobretudo quanto à paridade de poder — as decisões verdadeiramente importante continuarão a ser fundamentalmente alemãs.

3. Pelo que se vai conhecendo, as ideias de Emmanuel Macron para a União Europeia são ideias típicas do centro-esquerda francês europeísta. Nos seus traços gerais, não são muito diferentes daquelas que, em 2012, quando François Hollande chegou ao poder, se esperava que a França conseguisse impulsionar a nível europeu. Não conseguiu. Foram rejeitadas por Angela Merkel. Esta viu aí uma tendência perniciosa da França querer mais integração europeia, mas com a Alemanha a pagar os maiores custos. Agora Emmanuel Macron quer dar-lhes um novo impulso. Procura aproveitar o impacto da sua recente eleição e as manifestações de apoio que tem recebido a nível europeu (provavelmente mais por alívio de não ter sido Marine Le Pen a vencedora do que por genuíno apoio). Assim, a ideia de um ministro das finanças europeu, de um orçamento comum para a Zona Euro, de mecanismos automáticos de assistência financeira em caso de crise, ou até da emissão de títulos de dívida comum (eurobonds), poderão voltar ao centro das discussões europeias. (Macron, para já, deixou cair a ideia de emissão de títulos de dívida comum, completamente inaceitável para os alemães.) Como já referido, propostas similares surgiram durante a crise da Zona Euro, sob o nome de governo económico europeu. Na altura ficou claro que desagradavam aos governos das economias mais prósperas da União Europeia, desde logo a alemã, mas também a holandesa, a austríaca, a sueca ou a dinamarquesa (embora estas últimas estejam fora da Zona Euro). Apesar de tudo, têm alguma simpatia entre as principais figuras do SPD alemão, Sigmar Gabriel e Martin Schulz, seja por convicção ou estratégia política de demarcação da CDU/CSU da Angela Merkel e do seu Ministro das Finanças, Wolfgang Schäuble. No entanto, a eleição de Martin Schulz e de um governo do SPD para os próximos anos parece um cenário político pouco provável.

4. Para o bem ou para o mal, consoante as perspectivas, Angela Merkel tornou-se uma figura central da política alemã e europeia dos últimos doze anos. Como chanceler federal, está no poder desde finais de 2005. Já passou por três presidentes franceses: Jacques Chirac, Nicolas Sarkozy e François Hollande. Emmanuel Macron é o quarto presidente francês que vai ter durante o seu longo mandato. O actual presidente francês poderá ter de liderar com Angela Merkel durante mais um mandato desta, se o seu partido, os democratas-cristãos da CDU/CSU, vencerem as eleições legislativas federais de 24 de Setembro de 2017. No início do ano, Martin Schulz do SPD, o Partido Social Democrata alemão, que abandonou a Presidência do Parlamento Europeu para ser candidato às legislativas, parecia bem posicionado para poder derrotar Angela Merkel. Mas a dinâmica eleitoral está, nesta altura, a caminhar noutro sentido. Nas últimas eleições efectuadas em vários Estados federados, a CDU de Angela Merkel derrotou o SPD no Sarre, no Schleswig-Holstein e na Renânia do Norte-Vestefália. Pelas tendências de voto actuais, muito dificilmente Martin Schultz poderá sair vitorioso das eleições legislativas federais de 24 de Setembro de 2017. Não é o melhor resultado também para Emmanuel Macron. A visão de Angela Merkel sobre a integração europeia, o seu conhecimento da política europeia e a centralidade que a Alemanha adquiriu sob a sua liderança jogam contra Emmanuel Macron. Claro que Angela Merkel, habilmente, lhe poder querer alimentar a ilusão de uma parceria igualitária, pelas razões já apontadas.

5. Por último, a questão do impacto do Brexit. Alguns antecipam um efeito automático positivo sobre o eixo franco-alemão e a integração europeia. Mas a saída do Reino Unido da União Europeia não vai, necessariamente, ter esse efeito. Nem sequer é líquido que favoreça significativamente a França, nem a sua parceria com a Alemanha. É certo que há um espaço de poder que ficará em aberto e que esta vai tentar ocupar. A França mantém alguns trunfos a nível político: ficará a ser o único membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas dentro da União Europeia. Também dispõe, a nível militar, de argumentos importantes: será futuramente o único Estado da União com armamento nuclear. Mas há importantes circunstâncias adversas. Primeiro porque a actual União Europeia, com muitos Estados do centro e leste europeu, não é um terreno natural de influência francesa. Segundo porque o ajuste que será necessário fazer para o orçamento da União, para preencher a contribuição britânica em falta, recairá mais sobre a Alemanha. Isso reforçará, ainda mais, o seu peso económico-político. Terceiro porque a ideia de que a integração europeia se poderá facilmente aprofundar, segundo uma visão francesa de Europa, uma vez removido o obstáculo britânico, é simplista. Provavelmente são resquícios de um passado dos primórdios das Comunidades, nos 1960, onde a França, sob o general de Gaulle, se opôs à adesão britânica com similar argumento. A União Europeia de hoje é muito mais heterogénea e complexa. A saída da britânica não faz recuar às circunstâncias pré-1973, ou mesmo dos anos 1990. Os quadros mentais do passado são um obstáculo maior na tarefa de pensar o futuro. Uma União mais integrada, ou federalizada, dirigida por um eixo franco-alemão, é um modelo do passado. Nada garante que seja aplicável, com sucesso, na União Europeia do século XXI. No pior cenário, pode ser um disfarce de ambições de poder e de directório sobre o conjunto europeu.

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