O Grande Ódio

Não sabemos o que será do futuro. Isso é, da semana que vem.

Jamais a política e a economia foram tão estáveis nos 126 anos da República do Brasil quando naqueles que se passaram entre 1994 e 2013. Essa relativa calmaria começou com o fim da hiperinflação e a eleição de Fernando Henrique Cardoso e terminou com grandes, inopinados e ainda misteriosos protestos de rua, o Junho de 2013.

Então descobrimos que éramos infelizes e não sabíamos, no dizer de um cientista político, André Singer, ex-porta-voz do Governo Luiz Inácio Lula da Silva.

Daí rapidamente passamos à polarização política, à eleição presidencial odienta de 2014, à maior recessão da história, à evidência da corrupção geral nas relações entre Estado e grandes empresas, ao esfacelamento dos maiores e melhores partidos. Enfim e chegamos ao “impeachment” ou ao “golpe”, a depender da cor política do freguês.

A explosão final ocorreu na virada de 2014 para 2015, na segunda posse de Dilma Rousseff. Pressionada pelo colapso das contas do Governo, entre outros, a Presidente reeleita anunciou um plano diametralmente oposto ao que pregara na campanha eleitoral, parecido com o de seus adversários, a quem acusara de modo agressivo de defender o desmonte dos direitos sociais.

A reviravolta de Dilma provocou o colapso de seu prestígio, a seguir protestos nas ruas e, logo depois, o início dos debates sobre sua deposição, via Justiça (por crimes eleitorais) ou pelo Congresso (“impeachment”).

O PSDB, derrotado pela quarta vez pelo PT em 2014, reagiu à maneira da antiga direita brasileira, da República de 1946-1964. Classificava a vitória petista de ilegítima. Havia escândalo com a corrupção disseminada e ciclópica, revelada desde Março de 2014 pela operação Lava Jato. Mas a grande reviravolta política ocorreu com o que chamamos de “estelionato eleitoral”, quando Dilma renegou seu programa, em Dezembro-Janeiro de 2015.

O PIB per capita vai diminuir cerca de 10% entre 2014 e neste 2016. Os nomes da crise económica variam entre estagflação e depressão. Aumentos de impostos política e economicamente viáveis, mas ora improváveis, não bastariam para manter as despesas em benefícios sociais. No que parece hoje a melhor das hipóteses, a economia não deve voltar ao nível de 2013 antes de 2022. Nova década perdida.

Depois de Junho de 2013, as diferenças políticas se explicitaram “nas ruas”. Rasgaram-se as fantasias, inclusive as de civilidade. Na campanha de 2010 já se notava ódio. Mas todas as flores do pântano floresceram mesmo depois do Junho de 2013.

De início, nessas manifestações, jovens estudantes de esquerda protestavam contra o aumento do preços das tarifas de transporte público. Depois da repressão policial violenta em São Paulo, o protesto reuniu milhões, em gritos de grande cacofonia ideológica.

É notável que o Grande Ódio tenha começado em um ambiente económico em que todas as “classes de renda” ganhavam, os mais pobres em particular. Era o auge do rendimento médio do trabalho e da proteção social. Dias da menor desigualdade de renda do Brasil. 

O Grande Ódio começou a ficar evidente com o deslocamento de placas tectônicas de status, na fricção interclasses até no convívio social. Trata-se de evidências anedóticas, mas de domínio público.

Por exemplo, a caricata mas muito real irritação com os “pobres que agora andam de avião”. Com a lei que estendeu aos empregados domésticos todos os direitos trabalhistas. O medo dos “rolezinhos”, passeios de grupos de jovens das periferias, em geral de pele mais escura, aos shopping centers. A revolta com o programa federal de contratar médicos em massa para pequenos e distantes vilarejos pobres, a maioria deles cubanos, no início.

Havia desde 2012 irritação com Dilma Rousseff nas elites económicas, em São Paulo em particular. A Presidente começava a arruinar as contas públicas, tomava medidas de intervenção económica que começaram quixotescos e se tornaram incompetência desvairada, quando não de inclinação autoritária. O Governo passou a ter défices gigantescos a partir de 2014, antes em parte fraudados por “contabilidade criativa”. As maiores estatais, Petrobras e Eletrobras, foram arruinadas. A rentabilidade das empresas caía, em parte devido aos efeitos da alta acelerada do salário mínimo.

O conflito com o Congresso se exacerbou, pois a Presidente era não apenas avessa à micropolítica, mas autossuficiente. A fragmentação partidária acelerou-se, Dilma Rousseff passou a perder votações com frequência cada vez maior. Entrou em conflito terminal com o PMDB, partido central na montagem das coalizões de governo do Brasil, “de centro” (vende-se a quem lhe der mais cargos, verbas ou propinas).

Apesar do nosso histórico de violência e tumulto político, o Brasil é um país de conciliações – pelo alto, pela elite: não foi assim nossa separação de Portugal?

Mas nossas transições transadas e paz aparente sempre tentaram camuflar conflitos de classe. Fosse por meio de violência pura, na supressão autoritária da polémica das divisões sociais, ou por meio de edulcorações da realidade. De certo modo, é bom dar por perdidas essas ilusões. No entanto, é difícil de imaginar como sairemos deste buraco.

A polarização é imensa, explícita e jamais envolveu tanta gente no confronto – nem mesmo no ano do golpe militar de 1964. Nas projecções optimistas, alguma recuperação económica, apenas do terreno perdido, começa em 2018. O país estará rachado pela mobilização social inédita, pelo ódio inédito, pela ruptura institucional, “golpe” ou “impeachment”. Os partidos melhores perderam o resto das poucas articulações e bases sociais. As lideranças políticas estão quase todas desprestigiadas, como em 1989, mas então havia promessas de Lula e do novo PSDB – agora, não há novidades. O eleitorado jamais se sentiu tão pouco representado por eles. Um candidato parafascista à Presidência tem perto de 10% das intenções de voto.

Algo de muito grave aconteceu no Brasil, desde 2013, mas todos aqueles que não estamos por demais envolvidos na política partidária mais mesquinha estamos perplexos. Não sabemos o que será do futuro. Isso é, da semana que vem.

 

Vinicius Torres Freire é colunista do jornal Folha de S. Paulo.

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