O futuro da raça na América

O filme 12 Anos Escravo, que se estreou esta semana, volta a colocar os Estados Unidos perante a questão racial. O país está cada vez mais diversificado, mas falta ainda um movimento político.

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Depois, há a parte que os censos não podem medir — as histórias que revelam que a identidade racial está a ficar cada vez mais complicada e em convulsão: a adolescente que antes se definia como latina está a “sair do armário” como negra; uma mulher que toda a gente acha que é grega anuncia ser birracial; há notícias de que 12% dos lares judeus se consideram “multirraciais ou não brancos”; um importante académico afro-americano descobriu que tem 49% de antepassados europeus.

Pensemos nas galerias de fotos que circulam na Internet que se destinam a apelar ao nosso fascínio colectivo pela ideia de que há mais identidade para além do que se capta à vista desarmada, incluindo “As 15 celebridades que a maioria das pessoas não sabem que são negras” e “Pessoas que você pode não perceber que são asiáticas”. (…)

Será este um sinal de que nos estamos a aproximar de uma América onde todos somos mais ou menos parecidos e que por isso dispensamos o exercício maçador e impreciso de nos dividirmos uns aos outros em categorias raciais? Quase de certeza que não. Nisto, os especialistas estão de acordo. Sendo assim, quais são as previsões quanto ao futuro da raça na América? Como é que as formas pelas quais pensamos no assunto e falamos dele irão mudar ao longo das nossas vidas? Se não somos pós-raciais — nem perto disso —, o que somos então? E para onde vamos? O único consenso verdadeiro sobre esta pergunta complicada é: depende.

Aqui estão quatro teorias diferentes sobre a evolução da raça na América e o que irão exactamente exigir de nós as mudanças significativas que estão ao nosso alcance.

1. Podemos todos rejeitar a ideia de que a biologia divide os seres humanos em cinco grupos raciais. Mas só a ciência não chega. Será preciso um movimento político.
Dorothy Roberts, autora de Fatal Invention: How Politics, Science, and Big Business Re-Create Race in the Twenty-First Century, diz que já não é segredo, nem sequer um facto pouco conhecido, que aquilo que pensamos como “raça” é simplesmente um conjunto de categorias políticas que foram criadas para governar as pessoas.

De acordo com a professora da Pennsylvania Law School, essa informação foi conhecida desde que os cientistas que mapearam o genoma humano declararam que as diferenças raciais não existem a nível genético. Claro que, diz Roberts, a raça “usa várias demarcações biológicas que ajudam a distinguir quem pertence a um ou outro [grupo]. Mas estas — cor de pele, cor de cabelo, forma do nariz ou lábios — são apenas parte do que usamos para determinar a que raça alguém pertence”. No entanto, a identificação racial de uma pessoa pode mudar com o tempo, lugar e perspectiva — mesmo ao longo de uma vida — e é impossível de assinalar objectivamente como requer a boa ciência.

Mas terá já alguém — mesmo os da comunidade científica — afastado totalmente o que ela chama de “mito da raça como categoria biológica?” Nem de perto. E essa é uma das grandes frustrações de Roberts.

É por isto que ainda vemos alguns títulos como aqueles onde se lia que a vacina do vírus do papiloma humano (VPH) é “menos eficaz em negros”, diz ela, como se os afro-americanos, por virtude da sua identidade social, tivessem uma química corporal diferente. “A raça existe enquanto forma de agrupamento político e isso tem um impacto na saúde. Mas isso é muito diferente de dizer que se pode diagnosticar doenças e prescrever medicamentos com base na assunção de que a raça determina de forma inata a saúde das pessoas. Não é científico e é uma má prática médica”, insiste Roberts.
Apesar das provas de que não existe uma base genética para a raça, Roberts afirma que não espera que isto venha a mudar brevemente porque “a raça sempre serviu um propósito político”.

A sua previsão: na medicina e noutras áreas, a futura rejeição da perspectiva de que os humanos estão divididos em diferentes categorias biológicas naturais que determinam os seus traços “depende completamente dos interesses políticos e do combate político”.

2. Podemos desenvolver formas mais precisas de descrever as nossas identidades. Mas só se os censos o fizerem primeiro.

Kenneth Prewitt, autor de Qual É a Sua Raça? Os Censos e os Nossos Esforços Enviesados de Classificar os Americanos, vê uma população americana a ultrapassar rapidamente aquilo a que chama “as raças antigas do século XVIII” que actualmente aparecem nos censos e noutros impressos do Governo.

Mas, diz, é difícil as pessoas identificarem-se com nuances — e ainda mais difícil fazer uma política social acertada — quando jornais, estatísticas e relatórios sobre disparidades usam todos aquelas categorias estanques que são incapazes de reflectir os detalhes nas nossas experiências actuais.

“As actuais categorias tornaram-se cristalizadas antes da era dos direitos civis e foram mantidas para desfazer o estrago”, mas já não significam muito, afirma Prewitt. Diz que são “trapalhonas” porque colocam pessoas com antecedentes muito diferentes sob a designação de “asiáticas”, por exemplo, e classificam os filhos de imigrantes recentes da Etiópia como “negros”, juntamente com os descendentes dos escravos americanos.

Prewitt espera que as actuais questões de raça e etnia nos censos federais possam cair e sejam substituídas por perguntas com mais nuances — pense-se num inquérito com um menu de escolha múltipla com perguntas mais aprofundadas sobre parentesco e identidade pessoal. Estas, por sua vez, poderão facultar um vocabulário mais alargado para falarmos sobre grupos populacionais que reflectem a realidade e fazermos políticas que respondam às suas necessidades.

A sua previsão: no que diz respeito à forma como falamos sobre raça e disparidades raciais, “uma mudança radical é técnica e politicamente alcançável”, mas temos de começar pela forma como o Governo nos ensina a classificarmo-nos uns aos outros.

3. Podemos começar a derrubar os estereótipos raciais. Mas se a segregação habitacional e a pobreza concentrada persistirem, os negros não terão essa oportunidade.

A professora de Direito na Georgetown University Sheryll Cashin, autora do livro recentemente editado Place Not Race: A New Vision of Opportunity in America, diz que a identidade racial é em parte uma escolha e em parte uma imposição externa.

Num futuro próximo, diz, “será menos uma jaula para alguns”. Mas as pessoas que se conseguirão libertar dessa jaula e decidir a forma como a sua raça os define, ou não, serão os mais qualificados e com graus de educação mais elevados.
Que pessoas, segundo Cashin, terão menos a dizer sobre como a sua raça os define? Os afro-americanos. E isso terá tudo que ver com a segregação habitacional e a pobreza concentrada.

“Aposto dinheiro em como se eu chegar aos 100 anos e se os bairros que são identificados como guetos (bairros de negros e pobres) ainda existirem, continuará a haver um estereótipo forte e persistente ligado aos seus residentes”, afirma. “Eles serão negros, serão ‘catalogados’ como negros e não terão muitas hipóteses de praticar outro tipo de identidade.” E afirma que estas associações hão-de generalizar-se a negros que vivam noutros locais.

É por isso que Cashin prevê que, apesar da forma como latinos, asiáticos, mestiços e até mesmo, de certa maneira, negros com altos rendimentos definem o que significa a sua identidade racial, “as pessoas negras de baixo rendimento não terão as mesmas opções enquanto os padrões de residência e as oportunidades económicas que os acompanham não mudarem drasticamente”.

A sua aposta quanto ao futuro racial da América: a separação entre negros e não negros não deverá desaparecer nos próximos 50 a 75 anos ou enquanto os estereótipos que saem do gueto dos bairros continuarem a ser aplicados mesmo para além das suas fronteiras.

4. “As pessoas de cor” podem liderar a via da igualdade. Mas apenas se se virem a si próprias como um só grupo.
Angela Glover Blackwell, fundador e CEO do Policy Link, diz que é possível que as pessoas de cor — negros, asiáticos, latinos — estejam à beira de fazer uma coisa que os brancos fizeram há muito tempo: identificarem-se como um grupo e emergirem como uma poderosa maioria.

“Os brancos não se identificavam como uma raça até isso os beneficiar política e economicamente — eram simplesmente irlandeses, italianos, gregos, etc.”, salienta.

Blackwell crê que os cidadãos não brancos americanos estão agora prestes a ter a oportunidade de fazer uma coisa semelhante, mas esclarece: “Não vejo que isso vá acontecer excluindo os outros, mas através de uma voz sobre o caminho do país que inclua toda a gente.”

Para ela, isso significa uma união com uma estratégia e pressão para políticas que construam mais inclusão, que resolvam a desigualdade e que permitam às pessoas construir novamente riqueza. “Se as coisas correrem bem, se nos tornarmos totalmente inclusivos, se investirmos na igualdade, isso permitirá que todos explorem as suas diferenças e aquilo que têm em comum”, antevê.

A sua previsão: o facto de até 2043 a maioria dos americanos serem de cor não terá grande significado se negros, latinos e alguns grupos asiáticos que estão a ser desproporcionalmente deixados para trás não se unirem para ver o que têm em comum e fizerem pressão para uma política de igualdade.

a Exclusivo PÚBLICO/ The Root

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