O federalismo dos EUA e a União Europeia

O que se gasta em despesa militar nos EUA e o que se gasta em despesa social a nível de União Europeia, espelha duas opções fundamentalmente diferentes. Ambas têm o seu preço no bem-estar dos cidadãos e no papel político no mundo.

1. As eleições presidenciais que vão decorrer nos Estados Unidos da América (EUA), a 8 de Novembro próximo, deram renovada visibilidade à política norte-americana. Apesar da constante presença dos EUA nos media — ligada sobretudo às questões de política externa e aos seus interesses como potência global —, o funcionamento interno nem sempre é bem percebido. Compreendê-lo é relevante, não só para entender as especificidades da eleição presidencial, como, em termos mais gerais, o modelo federal norte-americano. Não é exagero afirmar que o aparecimento dos EUA, como Estado federal, em finais do século XVIII, foi um acaso histórico. Na altura da proclamação de independência das treze colónias britânicas, em 1776, estas viam-se como Estados independentes (soberanos), embora cooperando estreitamente entre si. Tratava-se de criar uma confederação de Estados soberanos e não de um Estado federal. A cooperação, em certas áreas, como a defesa, resultava da necessidade de sobrevivência. Em termos militares, um poderoso inimigo comum — o antigo poder colonial britânico que se começava a transformar numa potência global —, ameaçava a sua existência. Em termos económicos, as trocas comerciais eram fundamentais para a sobrevivência dos antigos colonos do Novo Mundo.

2. Os britânicos foram o grande federador involuntário. A ameaça existencial que colocavam às treze colónias independentistas foi o impulso unificador decisivo. Levou a abandonar a ideia inicial de uma confederação de Estados soberanos. Foi determinante no quebrar da resistência para transferir competências na defesa, diplomacia e impostos para um governo federal. Mas o processo não foi linear, nem a transformação em Estado federal tão óbvia quanto pode parecer hoje. O Estado de Rhode Island boicotou os trabalhos da Convenção iniciada em 1787 em Filadélfia, não enviado qualquer delegado. Nem todos os delegados que participaram nos trabalhos da Convenção assinaram o texto da Constituição. A emblemática frase de abertura We the people of the United States / Nós o povo dos Estados Unidos (que pretendeu legitimar a Constituição na vontade do povo norte-americano, contornado a resistência dos Estados que integravam a confederação inicial), não surgia nas versões iniciais do documento. O Estado de Rhode Island só ratificou o documento constitucional em 1790. (Em 1788, já 9 dos 13 Estados necessários para entrar em vigor o tinham feito). A ratificação ocorreu após fortes pressões políticas e comerciais: os Estados vizinhos ameaçaram aplicar-lhe tarifas comerciais e tratar os seus produtos como importações do estrangeiro. A situação faz lembrar, na União Europeia, os casos da ratificação do Tratado de Maastricht (só feita pela Dinamarca num segundo referendo) e do Tratado de Lisboa (só feita pela Irlanda também após um segundo referendo). Tal como nos EUA de finais do século XVIII, os pequenos Estados (Rhode Island é um dos mais pequenos da federação norte-americana), foram pressionados — ou chantageados —, para praticar um acto político com implicações na sua soberania.

3. A escolha do presidente e do vice-presidente nos EUA não é feita directamente pelos cidadãos, mas por um colégio eleitoral — os Eleitores — com origem nos Estados federados. Esta é uma consequência constitucional de um Estado que começou por ser uma confederação e se transformou em federação. Cada Estado federado tem o seu próprio número Eleitores: é a escolha destes que os cidadãos fazem directamente. O número varia muito devido à população de cada Estado. Nos extremos temos a Califórnia (55 eleitores) e o Alasca (3 eleitores). A legislação eleitoral varia também nos diferentes Estados. Na grande maioria, o candidato presidencial mais votado elege todos os Eleitores desse Estado federado. Importa notar que não há nenhuma disposição constitucional que obrigue os Eleitores a escolherem o Presidente de acordo com os resultados do voto popular nos seus Estados. (Há, todavia, legislação em certos Estados federados nesse sentido, existindo, também, em outros, constrangimentos políticos explícitos para respeitar essa escolha). É também possível que o Presidente eleito — que necessita de um mínimo de 270 votos dos Eleitores —, não tenha a maioria na soma da votação popular a nível nacional. Não é um modelo de perfeição democrática, mas antes uma lógica de repartição de poder entre Estados federados. Um exemplo recente foi a eleição de George W. Bush em 2000, com 271 votos no colégio eleitoral e cerca de 500 mil votos a menos que Al Gore, na votação popular.

4. O federalismo dos EUA pode ser um modelo inspirador para os que vêm como fim último da União Europeia federar os povos europeus? Muito provavelmente não. Importa por em paralelo a história europeia e norte-americana dos últimos duzentos anos, e a sua relação com a guerra, para perceber as razões dessa inadequação. Para os EUA, as guerras europeias sempre foram uma enorme bênção. No início do século XIX, as guerras Napoleónicas que assolaram o território europeu desviaram os britânicos do objectivo de reconquistar as colónias perdidas. (Mesmo assim, em 1814, as tropas britânicas ocuparam Washington e incendiaram a Casa Branca e o Capitólio, numa guerra que levou os nascentes EUA quase à beira do colapso.) As guerras na Europa permitiram, também, avanços sobre os territórios coloniais de outras potências europeias na América do Norte — Espanha e França. A esta última compraram a Luisiana; à Espanha, enfraquecida pelas invasões Napoleónicas, a Florida, num misto de pressão político-militar com transacção comercial. No século XX, a I Guerra Mundial e, depois, a II Guerra Mundial, ambas essencialmente guerra civis europeias, foram o melhor que podia acontecer aos EUA. Ascenderam rapidamente a potência global. Ao contrário da Europa, onde os anos 1920, a segunda metade dos anos 1940 e a primeira metade anos 1950, foram anos cinzentos e tristes — a difícil reconstrução do pós-guerra —, para os EUA foram anos de ouro, de optimismo e de triunfalismo do seu modelo económico, social e político.

5. A história mostra como o contraste não podia ser maior entre os impulsos de unificação da América do Norte e da Europa. Conforme já notado, o federalismo dos EUA é filho, bem-sucedido, de um inimigo comum no seu momento fundador (o Império Britânico). Teve a solidificá-lo sucessivas guerras vitoriosas contra inimigos externos, que estão na génese do Estado federal. Na sua fase embrionária e isolacionista do século XIX, após os britânicos, a Espanha e o México foram os principais inimigos da federação devido ao seu expansionismo territorial, para Sul e Oeste. Mais tarde, já na primeira metade do século XX, a Alemanha imperial (na I Guerra Mundial) e o Japão imperial e a Alemanha nazi (na II Guerra Mundial) foram os grandes inimigos e derrotados. Estas últimas duas guerras transformaram o país de uma potência meramente regional, numa potência global com um poder sem precedentes na história humana. Isto explica como as suas forças armadas — dispondo de um estatuto e prestígio único que não têm em nenhuma outra democracia ocidental —, se tornaram um pilar fundamental do Estado federal. A par destas só provavelmente o dólar — a moeda única da federação, a qual, no pós-guerra, ganhou o estatuto de principal divisa do comércio internacional e moeda de reserva —, tem similar papel de cimento do federalismo norte-americano.

6. Pelas vicissitudes da história europeia, especialmente da primeira metade do século XX, o processo europeu é fundamentalmente inverso. A integração das Comunidades / União Europeia é filha da tragédia da guerra e não do sucesso nesta. Fez-se para a evitar de novo em solo europeu. O modelo social europeu não resultou apenas da necessidade de reconstrução do pós-guerra. Resultou, também, de uma necessidade de legitimar o Estado fora da lógica clássica das funções de soberania e do impulso nacionalista. Pelo contrário, na história dos EUA não tem qualquer papel legitimador. Enfrenta a oposição dos que vêm com desconfiança qualquer possível acréscimo de poderes do governo federal, à custa dos Estados federados. Ideologicamente, enfrenta ainda uma forte resistência das ideias liberais/(neo)liberais, que o rejeitam como modelo de sociedade e economia. A consequência é um elevado grau de injustiça social e de desigualdade, e fracturas sociais profundas como esta eleição presidencial nos EUA mostra. Para a União Europeia, a consequência do seu modelo é a fragilidade como actor internacional nas grandes questões do mundo. Nesta, é uma política externa e de segurança e defesa unificada e coerente, com forças militares europeias integradas e um orçamento adequado, que se tem mostrado uma impossibilidade. Para além de colidir com a tradição europeia de soberania do Estado-nação, choca com as amplas funções sociais do Estado que sararam as feridas das duas guerras civis europeias. O que se gasta em despesa militar nos EUA e o que se gasta em despesa social a nível de União Europeia, espelha duas opções fundamentalmente diferentes. Ambas têm o seu preço no bem-estar dos cidadãos e no papel político no mundo.

Investigador

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