O ego terrorista

Todos os europeus convertidos ao Daesh são ungidos com um nome islâmico. A crise do terrorismo na Europa é também uma crise identitária e simbólica da nossa juventude.

Raros são os analistas que colocam no epicentro do actual fenómeno terrorista a juventude dos que se deixam seduzir pelo "jihadismo" e sobre o que possa levá-los a fazerem-se explodir junto de inocentes em nome de um ideal político-religioso que nunca chegaram verdadeiramente a conhecer e compreender. Continuamos a encarar esta questão com displicência. No que toca ao terrorismo em solo europeu, sabemos que um grande número dos que hoje partem para a Síria são adolescentes ou mesmo pré-adolescentes. Estremecemos, mas passamos adiante, porventura por se tratar de uma constatação demasiado dolorosa.

A procura de razões para estes atentados – se é que a razão pode aqui alguma coisa – tem incidido sobretudo sobre fenómenos de exclusão social e dificuldades de integração de emigrantes de segunda geração. Os apóstolos da “ciência cidadã” escolhem quase sempre o caminho mais cómodo, que é o de anteporem a flexão ideológica à reflexão crítica. A realidade é bem menos linear: uma parte significativa dos jovens nascidos na Europa que viajam para a Síria com o objectivo de se juntarem ao Daesh é oriunda das classes médias e cresceu em ambientes familiares laicos e tolerantes. Tal não os impede de bradarem “Alla'hu Akbar” ou de reclamarem vingança “pela Síria” no instante em que accionam os explosivos que trazem no corpo.

Uma linha de reflexão possível é a que nos alerta para um caminho que leva o jovem à desumanização de si mesmo; outra leva-nos por um caminho aparentemente antagónico: o de uma exacerbação paroxística do ego, nessa fronteira ténue entre o radical desprezo e o radical amor por si mesmo, que aparenta o terrorismo ao martírio. No mártir, o amor-próprio e o ódio-próprio tornam-se, com efeito, indistinguíveis, pois ambos incitam o candidato a superar quaisquer limites ou interditos físicos e morais que o nivelem com o próximo. Aquele que busca o martírio antevê-se aureolado de glória pela posteridade, triunfo que os doutrinadores conceptualizam e publicitam. E também nos coloca na senda do que Hegel chamava o “desejo de reconhecimento”, notório, nos atentados de Paris, e ao contrário do habitual, nos rostos destapados dos terroristas.

Teve pouco eco um estudo publicado em 2014 pelo Centro de Prevenção contra as Derivas Sectárias ligadas ao Islão, sediado em França, com o título A Metamorfose Operada nos Jovens pelos Novos Discursos Terroristas (o PÚBLICO dedicou-lhe uma peça a 18-01-2015). Este estudo, a que devemos voltar, foi feito com base nos relatos de 160 famílias francesas, cujos filhos radicalizados – a maioria dos quais com idades entre os 15 e os 21 anos e praticamente todos radicalizados por via da Web – as apanharam completamente de surpresa. Dessas famílias, lê-se no estudo, 80% não professavam qualquer credo religioso e apenas 16% pertenciam às classes populares afectadas pelo desemprego.

Conclui-se aí que a desumanização do jovem é o corolário de etapas cuidadosamente programadas de desresponsabilização individual e gradual submissão a uma idealizada comunidade de eleitos constituída pelos que escutaram o “chamamento” e que devem honrá-lo alheando-se dos outros, rompendo com os falsos, com os ímpios – desde logo com o núcleo familiar. A radicalização é individual e opera-se na segurança da casa paterna, no refúgio do quarto, diante de um ecrã de computador. A jovem presa começa por se deixar atrair pelo carácter espectacular, quase cénico, da simbologia jihadista; capturam-lhe a imaginação as poses dos combatentes de lenço a tapar o rosto e AK-47 brandida como uma espada sagrada, impressionam-no as bandeiras negras do “Estado Islâmico” desfraldadas – parecidas com as dos barcos piratas do imaginário infanto-juvenil – contra o fundo de uma aurora radiosa ou de um crepúsculo dramático, e depois empolgam-no as proezas sanguinárias, os cadáveres dos inimigos exibidos como troféus, imunizado no contacto com a violência do cinema, dos videojogos e dos Walking Dead deste mundo.

A viagem para o "califado" é preparada e vivida como uma grande aventura "que contraria a normalidade da existência a fim de viver a intensidade do sacrilégio” (op. cit., p. 88); implica a audácia de partir e renegar tudo aquilo que era familiar, de dar o "salto no desconhecido" e abraçar a "vertigem do fora-da-lei" (ibid.). Segue-se o rito violento e sanguinário exigido pelos recrutadores como forma de precipitar o neófito no irremediável, no ponto de não-retorno, e de consolidar o grupo com o conhecimento e testemunho mútuo das transgressões. Submete-se o jovem a assistir a execuções, a degolações, espezinhando as resistências morais que ainda subsistam. O passo derradeiro consiste na radical desumanização do inimigo – da vítima. O jovem deve matar ele mesmo um prisioneiro, primeiro à distância, alvejando-o, depois à queima-roupa, degolando-o até lhe separar a cabeça do corpo. Tudo é fotografado, filmado e publicitado na Web e nas redes sociais, como forma de auto-afirmação, de exibição – o conjunto obedecendo aos códigos estéticos popularizados por Hollywood. A partir desse momento, qualquer atrocidade devém banal.

A adesão a uma ideologia jihadista, no sentido político-religioso, é um fenómeno tardio no processo de doutrinação, que labora sobre leituras desviantes do Corão e dos hadiths. Desde logo há que saber que o Islão diferencia tradicionalmente duas jihads: uma “jihad menor” e uma “jihad maior” (também dita “grande jihad”). A primeira, “menor”, é a que se identifica a um desígnio de combate “no caminho de Deus” e à punição e matança dos infiéis. A segunda, “maior”, identifica tal combate não com o combate contra os inimigos do Islão, mas contra si mesmo: contra o próprio ego. Esta “jihad maior”, que ressoa com outras tradições místico-religiosas, ocidentais e orientais, de domesticação das paixões, de moderação e autocontrolo, é completamente ignorada pelos doutrinadores que cultivam outrossim o exacerbamento do ego do recruta. Isto é, capitalizam nos jovens em crise identitária o seu potencial narcísico, de mitificação do eu, o seu desejo de reconhecimento e auto-afirmação, e canalizam esse potencial para uma libertação explosiva, caótica e mortífera.

É por isto que eliminar a ameaça terrorista que paira sobre os europeus não depende só de uma retaliação mais ou menos agressiva ou de um maior controlo e vigilância: depende, em boa medida, de neutralizar os imãs e prosélitos que, a partir da Web ou nas escolas de ódio que toleramos nas nossas cidades, doutrinam e recrutam jovens europeus ou muçulmanos com as narrativas identitárias que já não sabemos oferecer-lhes.

Enquanto não compreendermos que a problemática releva tanto da dimensão psicológica como da dimensão social, conduzindo-nos para um campo onde a identidade individual se cruza com a ideia de transgressão e de metamorfose contida nos ritos de passagem, que o Ocidente considera hoje anacronismos esvaziados de sentido, tendo decretado também, na sua sanha desconstrucionista e declinista, a morte dos heróis, preferindo-lhe o anti-herói, quando não o vilão. Os ritos de passagem consagram a cessação de um estado ou de um estatuto anteriores e sua substituição por um novo modo de ser. Na nossa Europa radicalmente secular, os ritos de passagem reduziram-se a simulacros ou a expedientes de marketing. O mais drástico dos ritos de passagem é talvez o que dita a transição da infância e da adolescência para a idade adulta, que as sociedades tradicionais simbolizavam numa morte seguida de uma ressurreição, atestada na adopção de um novo nome, isto é, de uma nova identidade. Muitos desses ritos implicavam uma viagem iniciática, não raro perigosa e rumo a terras longínquas. Todos os europeus convertidos ao Daesh, que buscam na Síria um exílio romantizado, são ungidos com um nome islâmico. A crise do terrorismo na Europa é também uma crise identitária e simbólica da nossa juventude.

Escritor, investigador, dirigente do PS-Porto

 

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