O dilema espanhol

Os “emergentes”, tanto o Podemos como o Cidadãos, não vieram para “embelezar a política” mas para concorrer com os antigos, o que torna difícil fazer pactos e coligações.

Reserve as sextas-feiras para ler a newsletter de Jorge Almeida Fernandes sobre o mundo que não compreendemos.

Felipe VI dissolverá o parlamento espanhol na terça-feira. O fracasso da primeira experiência de multipartidarismo suscita uma questão: que aprenderam os partidos (e os eleitores) nestes quatro meses? Interroga-se o politólogo Victor Lapuente Giné: por que é tão difícil pactuar em Espanha? Invoca as raizes históricas da cultura política espanhola, "a sua concepção da política como um jogo de soma zero".

Outro cientista político, Fernando Vallespín, fazia em Março um diagnóstico pessimista: "O mal é que aquilo que ressaltou foram as imensas fracturas que dividem a sociedade espanhola e a falta de vontade para as suturar. Um país sem projecto colectivo, rasgado por divisões territoriais e ideológicas, e onde os seus porta-vozes se esforçam por as acentuar com inusitado deleite. (...) Não é credível que não haja uma maioria que não possa alcançar pontos de convergência." A Espanha, dizem quase todos, precisa de grandes reformas e de uma revisão constitucional: "Como as vamos fazer se nem sequer somos capazes de formar um governo?"

Estes argumentos são pertinentes mas menosprezam um ponto. Os "emergentes", tanto o Podemos como o Cidadãos, não entraram em cena para "embelezar a política espanhola mas para competir [com os tradicionais], o que torna tremendamente difícil a possibilidade de pactos", observa o constitucionalista Francesc de Carreras.

Explicou logo após as eleições, no site Politikon, o economista Luis Abenza: "Se dois partidos estão ideologicamente muito separados, a margem para conseguir um acordo de governo é muito pequena. Ao contrário, quando dois partidos têm muito em comum, obter um acordo será mais simples, mas é provável que compitam pelos mesmos eleitores [caso de Espanha]. Esta força é aquilo a que chamamos o dilema estratégico dos governos de coligação." Acrescentava: "Se pensarmos num cenário com quatro partidos sem um passado de cooperação conjunta (...) é provável que não haja espaço para os quatro e que pelo menos um deva desaparecer."

Pequenos cálculos

Que expectativas há para Junho? As sondagens realizadas em Abril indicam a permanência fundamental dos resultados de Dezembro, mas com flutuações. Não indiciam vontade de regresso ao bipartidarismo. Os quatro partidos mantêm-se. Estes dados devem ser lidos com extrema prudência porque há uma dura campanha eleitoral pela frente. As pequenas flutuações são mais importantes do que parecem porque poderão alterar o número de mandatos dos partidos. Alguns analistas sublinham que a perspectiva de frustração eleitoral tenderá a traduzir-se num aumento da abstenção susceptível de alterar a composição do parlamento. Interroga-se um jornalista: "Em Dezembro de 2015, a Espanha mostrou paixão pela política. Manterá essa mesma tónica no 26 de Junho de 2016?"

Os pequenos cálculos estão na moda. Os estrategos do Partido Popular, escreve o La Vanguardia, calculam que a afluência às urnas poderia descer de 73 (em Dezembro) para pouco mais de 65%, o que beneficiaria o partido de Rajoy, que dispõe do eleitorado mais fidelizado. O objectivo é alargar a distância em termos de deputados perante os outros partidos. Se o PP, com 123 deputados, conseguir superar a barreira dos 130 aumentará a possibilidade de formar governo em coligação com o Cidadãos, forçando o PSOE a viabilizar o seu governo pela abstenção.

Outros sublinham que foram o PP e o Podemos quem mais dificultou um acordo, o que poderia provocar uma punição eleitoral. É patente que o PP e o Podemos decidiram que não haveria governo e que a sua estratégia visava provocar eleições. Ao contrário, o PSOE temia a repetição das eleições. O seu resultado é a mais importante incógnita de Junho.

A nova campanha

Na campanha prevê-se uma guerra sem quartel entre as duas esquerdas e uma tentativa do PP para manter os eleitores de Dezembro e recuperar alguns abstencionistas. O Podemos tem por meta superar o PSOE em votos e, se possível, deputados. A descer ligeiramente nas sondagens, prepara uma aliança com a Esquerda Unida (comunista), o que, com os dados actuais, lhe daria a possibilidade de ultrapassar os socialistas. O PSOE sempre se deu mal com formações à sua esquerda, sobretudo quando estas querem ocupar o seu espaço político.

Durante quatro meses, o PSOE e o Podemos nunca quiseram realmente pactuar. Iglesias agiu com patente má-fé, procurando debilitar Sánchez, e este "blindou" a recusa de aliança com o Podemos através do pacto com o Cidadãos. Queria os votos de Iglesias no parlamento mas não o queria no governo. Houve um imenso simulacro destinado a que cada um pudesse responsabilizar o outro pelo fracasso da unidade de esquerda e pela manutenção de Rajoy no poder. Nas circunstâncias actuais, outro cenário vedado aos socialistas é o da "grande coligação": seria suicidária porque daria ao Podemos o monopólio da oposição à "casta".

O PP apostará no "voto útil" e na governabilidade. Calcula-se que fará retoricamente do Podemos o inimigo principal, a "grande ameaça para a Espanha", menosprezando o PSOE. Tudo dependerá da marcha das sondagens. Para já, Rajoy conseguiu uma vantagem: as críticas deixaram de visar os escândalos e a sua impopular governação desde 2011 para se centrarem nestes quatro meses. Não o incomoda que acusem o seu "imobilismo" de fazer fracassar todas as alternativas.

A questão das alianças

Citei acima os argumentos realistas de Carreras e Abenza. O eleitorado espanhol, ao contrário do de outros países, não está "consolidado". Não se trata apenas da deslocação de votos entre partidos e da alternância de maiorias. Os "novos" partidos não se limitam a procurar "nichos" não ocupados, competem também pelos eleitores dos "velhos". De resto, o Podemos (ainda) não tem como projecto integrar-se no "sistema" ou apenas reformá-lo. Não abandonou o desígnio de o fazer implodir, destruindo o PSOE.

Os partidos estão confrontados com as expectativas sociais de uma "política diferente" — negociar e fazer pactos sobre as grandes reformas. Mas também envolvidos numa luta pela sobrevivência. No ano passado, 86% dos espanhóis exigiam pactos e consensos. Mas depois das eleições todos os modelos de coligação eram rejeitados por uma maioria dos inquiridos nas sondagens. A dificuldade não é exclusiva dos políticos.

Titulou este jornal no dia 20 de Dezembro: "Fim do bipartidarismo obriga a reinventar o modo de governar" em Espanha, isto é, passar da hegemonia do partido do governo para um modelo baseado em pactos e coligações. Também se avisou: a implosão do bipartidarismo não produz automaticamente um outro, apto a fazer coligações e governos.

Augura o antigo diplomata Carles Casajuana: "Em política não se trata de ter boas cartas mas de saber jogar bem as que se têm. Desgraçadamente, os quatro grandes partidos foram incapazes de nos surpreender com nenhuma proposta audaz, corajosa, e o resultado é que teremos de voltar às urnas. Talvez a surpresa a daremos nós, os eleitores." Aguardemos Junho.

Sugerir correcção
Ler 3 comentários