O choque de duas realidades

Nunca vi este país (os Estados Unidos) no estado de ansiedade em que está, nem com uma política tão surreal, nem com uma agressividade latente tão disseminada

Nova Iorque, EUA. — Há duas narrativas em choque iminente, ambas plausíveis, ambas forçando o seu poder para cima de nós, e ambas contraditórias entre si. Estão separadas por cerca de três quilómetros de distância. Inscrevi-me em ambas.

A noite eleitoral de Hillary Clinton será em Manhattan, Nova Iorque, num centro de convenções que se distingue por ter um amplo telhado de vidro. A inscrição é simples; passado umas horas recebe-se um e-mail para irmos levantar um máximo de dois bilhetes por pessoa. Quatro sedes de campanha na cidade distribuem incessantemente os ingressos a filas que se estendem para lá do quarteirão. Ao entrarmos, vemos o aparato tradicional de uma campanha americana: centenas de jovens afincadamente ao trabalho em todo o espaço disponível, às mesas, em cadeiras ou sentados no chão, armados de telemóvel e carregador, ligando para listas de votantes e apoiantes em todos os estados dos EUA. Um autocarro parte com voluntários para fazer campanha no estado da Pensilvânia, que os preocupa. Os dados do voto antecipado que vão chegando reconfortam-nos. As unhas estão roídas até ao osso.

A noite eleitoral de Donald Trump também será em Manhattan, no hotel Hilton, a menos de uma hora de caminhada. Está publicitada como "A Festa da Vitória" mas parece fechada ao grande público. A minha inscrição, feita antes da de Clinton, veio recusada na noite de sábado para domingo. E passar à porta da sede oficiosa de campanha, na Trump Tower da 5ª Avenida é, como descreveu Alexandre Martins para o Público, encontrar expostas as fraturas da América, com gente que protesta e gente que apoia — mas não uma campanha tradicional. Trump mobiliza os seus eleitores através da televisão, do ciclo noticioso e das redes sociais. As sondagens respondem apertando mais um pouco.

Até terça-feira, alguma coisa tem de romper. Alguma coisa tem de ser mais forte — entre os dados da votação antecipada que reconfortam os clintonistas ou as tendências das sondagens que encorajam os trumpistas — e levar o dia de vencida. Mas nem isso invalidará a cada vez menos pacífica coexistência de duas realidades opostas.

Como é evidente — e nem quero que seja outra coisa — não sou ambivalente entre estas duas realidades e não aceito que elas sejam equivalentemente verdadeiras. Como exemplo bastam-me as histórias dos últimos dois dias na campanha de Trump: ontem proclamavam que Trump tinha sido alvo de uma tentativa de assassinato que, como toda a gente viu em direto na TV, não ocorreu; anteontem, incendiaram as redes sociais com a mentira de que o diretor de campanha de Clinton participava em jantares satânicos. Para lá do anedótico, a campanha de Trump é baseada na premissa de que os mexicanos estão a invadir os EUA (na verdade, há mais gente a voltar para o México), de que o crime domina as cidades americanas (está a diminuir há décadas) e que a economia do país está no lixo (tem crescido respeitavelmente depois da Grande Recessão). A isto juntam-se os analistas menosprezando o fundo autoritário da campanha de Trump e atribuindo a sua força ao desemprego (quando os EUA estão perto do pleno emprego), à desigualdade (que baixou nos últimos anos), ao fim da classe média (que na verdade se tem alargado) ou ao voto dos pobres (que apoiam Clinton). A realidade paralela de Trump vai fundo e chega longe.

Também não sou — aprendi a não ser — indiferente ao resultado das eleições nos EUA. Por coincidência assisti aos três últimos ciclos eleitorais neste país. Quando cheguei pela primeira vez, em 2000, havia um encolher de ombros geral à escolha entre Gore e Bush Jr., mas teria feito uma grande diferença que essas eleições não tivessem sido decididas no Supremo e que não tivesse sido escolhido um presidente apostado em invadir o Iraque, em vez de um que acreditava nas alterações climáticas. Depois estive em 2008, em Chicago, na festa de Obama. E agora este teatro do absurdo em 2016. Nunca vi este país no estado de ansiedade em que está, nem com uma política tão surreal, nem com uma agressividade latente tão disseminada. A vitória na terça-feira dificilmente será o fim da história para qualquer dos lados.

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