O Cenário Impossível

1. Foi provavelmente Chris Patten, o comissário europeu para as questões externas, quem usou as palavras mais simples e, porventura, mais certas para resumir o significado do atentado terrorista contra os Estados Unidos. "Este é um dos raros dias sobre os quais se pode dizer sem risco de exagero que mudaram o mundo."

Talvez fosse esta também a única certeza dos analistas internacionais, parcos em palavras e em comentários, confirmando com o seu silêncio e a sua prudência a verdade contida nas palavras do comissário britânico.
Em que cenário encaixa o que ontem se passou na América? Em que visão do mundo pós-guerra fria? Em que filme de ficção produzido em Hollywood?

2. Bastou, no entanto, observar as reacções generalizadas dos governos mundiais e, em particular, dos governos europeus para que a dimensão da mudança de que falou Chris Patten começasse a ganhar os seus primeiros contornos. Não tanto nas palavras de repúdio, de condenação e de solidariedade, mas sobretudo nos actos.
Sucederam-se as reuniões de emergência em Londres, Paris, Berlim, Roma, Praga, Atenas... As forças armadas e de segurança da França, de Itália, do Reino Unido, de todos os países, foram colocadas em alerta máximo. O tráfego aéreo suspenso ou desviado do centro das grandes cidades europeias. A segurança reforçada em todos os edifícios públicos.
Não se trata apenas da natural preocupação dos governos com uma eventual generalização dos atentados contra os aliados da América. Trata-se da necessidade de contrariar de qualquer forma o terrível sentimento de insegurança e de vulnerabilidade que ontem abalou as democracias europeias, do topo à base, do primeiro responsável ao mais anónimo dos cidadãos.
Como disse Patten, a agenda internacional vai mudar e vai desde agora ser dominada pela combate a uma nova espécie de terrorismo para o qual as democracias ocidentais não estão preparadas. A União Europeia enfrentará agora, inexoravelmente, o seu momento da verdade para saber que mundo quer e o que pode fazer pelo mundo.

3. O -International Herald Tribune- escrevia há dias na sua primeira página: "Jogos de guerra tranquilizam o Pentágono". O jornal informava que "um exercício de guerra" conduzido pelos altos comandos americanos concluira que, com os actuais recursos em tropas e armamento, as forças armadas americanas estavam em condições de dominar um adversário e de parar ao mesmo tempo a ofensiva de um segundo agressor.
A "batalha" em favor do novo sistema de defesa anti-míssil (MD) lançada em todas as latitudes pela nova administração americana é justificada pela ameaça que constituem para os EUA e para os seus aliados os chamados "Estados-párias" como a Coreia do Norte, com capacidade para dispararem mísseis.
Nem o "exercício virtual" do Pentágono nem a nova "guerra das estrelas" puseram a América ao abrigo do verdadeiro "massacre" que ontem se abateu sobre ela.
Hoje, a confiança dos americanos no seu governo, no seu poder, na inviolabilidade do seu território - onde nunca se travaram guerras - terá provavelmente atingido o grau zero.

4. Também nos últimos dias, a imprensa americana dava conta das críticas generalizadas à incapacidade da nova administração para dar um rumo à sua política externa. A revisão da política externa que George W. Bush anunciou com fanfarras logo que chegou à Casa Branca estava a revelar-se errática, no meio de uma "guerra" ainda não resolvida entre as várias "escolas" pelo lugar preponderante junto do Presidente. Colin Powell e o departamento de Estado contra os velhos "falcões" do vice-Presidente Cheney e os novos "falcões" do Conselho Nacional de Segurança.
A imprensa fazia o retrato de um Presidente ainda à procura de uma linha, de um estilo, de uma forma de se relacionar com o mundo. O pior dos momentos para Bush enfrentar o tremendo desafio à sua capacidade de liderança que o atentado constitui.
Não será uma retaliação dura e rápida contra os principais suspeitos da barbárie que ontem se abateu contra a América - e que certamente ocorrerá - que pode restabelecer a confiança dos americanos na sua administração.

5. A tentação será, provavelmente, a da segurança em todos os azimutes, alimentando a percepção da América contra um mundo hostil, fechada na sua frágil carapaça de hiperpotência solitária. Os arautos do unilateralismo - o isolacionsimo dos tempos modernos que Roosevelt venceu quando respondeu a Pearl Harbour - e no "diktat" internacional vão ganhar provavelmente um novo alento.
"Há uma reflexão a fazer sobre a forma como as democracias ocidentais (...) mas sobretudo os EUA subestimaram o agravamento da crise do Médio Oriente e o desespero de alguns povos do mundo", disse o Presidente da Comissão dos Negócios Estrangeiros do Parlamento francês, François Loncle, citado pela AFP. Um comentário que, tendo todo o fundamento, aponta para outro caminho. O "engagement" da América é provavelmente a única resposta que pode afastar o cenário impossível que ontem aconteceu.
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