O cancro apanhou a revolução a Hugo Chávez

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O militar que se tornou político Reuters

Hugo Chávez, o militar que “apareceu” na vida dos venezuelanos ao som de tiros e de bombas a rebentar, morreu em Caracas, depois de ter sido operado pela quarta vez a um cancro na região pélvica.

Exactamente em que órgão não se sabe. Nunca foi dito.Como, aliás, nunca foi dito claramente que estava a morrer. A frase que mais se aproximou da realidade, dita pelo vice-presidente, Nicolás Maduro, foi qualquer coisa como: ele está consciente da gravidade do seu estado ou “ele está a lutar pela sua vida”. Entretanto, muitos milhões de venezuelanos rezavam e esperavam o milagre, o verdadeiro, que o de Maio foi a fingir, quando o Presidente chegou de mais uma operação e anunciou, enganando-os ou enganando-se: “Estou curado!”

Chávez foi, provavelmente, a personagem política da Venezuela mais honesta — e directa — sobre o que aí vinha. Não deixem morrer a revolução, pediu antes de partir pela derradeira vez para Havana (Cuba, onde foi sempre operado e fez a maior parte dos tratamentos contra o cancro), no dia 11 de Dezembro; e disse ao povo para votar em Maduro, nas eleições. Ele, que foi reeleito Presidente em Outubro do ano passado, a falar de novas eleições — adivinhava que não voltaria a exercer?

Tiros e bombas. Ao som deles Hugo Chávez apresentou-se aos venezuelanos, em 1992. O filho dos professores primários de Sabaneta (foi lá que nasceu, no estado de Barinas) tinha um sonho e tinha ídolos: Simão Bolívar, o herói das independendências latinas da América, Ezequiel Zamora, Simón Rodríguez, Ernesto Guevara, Augusto Sandino, Camilo Cienfuegos, Fidel Castro. Mas o golpe dos inssurrectos do Movimento para a Implantação da Quinta República fracassou, e Chávez foi para a prisão, dois anos, até ser indultado.

Os revoltosos tentaram segunda vez, meses depois, e falharam novamente. Na prisão, Chávez percebeu que estava no caminho errado. Se queria o socialismo do século XXI na Venezuela, ele tinha de chegar pela mão de um político, não de um militar, e transformou-se (durante algum tempo, a farda e o boné de antigo pára-quedista ainda lembraram a sua origem, mas desapareceram em pouco tempo).

A Venezuela estava preparada para uma figura como ele: o país estava cada vez mais pobre e as empresas (estrangeiras) que lhe exploravam as riquezas cada vez mais ricas; o sistema político estava cada vez mais corrupto e o povo cada vez mais pobre. O Presidente, Carlos Andrés Pérez, lançava um novo programa de grande austeridade para equilibrar as contas e Chávez irrompe na campanha eleitoral e vence, em 1998. Ganhou mais três eleições presidenciais e ganhou outras votações.

A confiança era tanta que se permitiu referendar-se a si mesmo, em 2002. Durante dois dias esteve fora do poder — outro golpe de Estado falhado; acusou os EUA de estarem por detrás dele e chamou todos os nomes a George W. Bush, passando por louco, diabo e alcoólico — e, quando a calma voltou a Caracas, pôs o povo a dizer se o queria ou não no poder; ganhou o “sim”.

Hugo Chávez revolucionou a política venezuelana, expulsou empresas estrangeiras, nacionalizou outras, recuperou o poder sobre o petróleo e usou-o para criar riqueza — construiu escolas, hospitais, infra-estruturas. Era um defensor dos pobres e da soberania, diziam os que gostavam dele. Era um autocrático que concentrou demasiados poderes em si (retirando-os às outras instituições políticas) e que para perpetuar o que passou a ser conhecido por “chavismo” fez uma emenda na Constituição para se poder candidatar indefinidamente à presidência. A revolução precisa de tempo para se implantar e para ganhar raízes, explicou.

Mudou a política social, acabou com as “oligarquias predatórias”, retirou a Venezuela de debaixo dos pés do grande capital internacional. E milhões adoraram-no. “O povo da Venezuela continuará a seguir o modelo desta revolução, mesmo que perca o líder”, disse a um um jornalista da AFP Miguel, 35 anos, porta-voz de um dos conselhos comunais do Bairro 23 de Janeiro, na zona oeste de Caracas e um bastião chavista. “A revolução não morrerá.”

“O povo, a classe oprimida, vai voltar a conquistar o poder [para dar continuidade] ao caminho do comandante”, disse ainda Miguel no final do ano passado, já supondo que Chávez poderia morrer e, por isso, se realizariam eleições, com Nicolás Maduro como candidato sucessor. Elisabeth Torres, uma mulher de 50 anos que vende bombons e cartões de telefone, disse que iria fazer o que Chávez lhe disse para fazer.

Porém, a oposição cresceu, a corrupção reapareceu, os preços do petróleo, para cima e para baixo, deixaram de dar estabilidade e abundância aos cofres do Estado. E 37,9% da população, diz o relatório para o Desenvolvimento das Nações Unidas, ainda vive abaixo da linha de pobreza.

Chávez, que sabia que ia morrer e, de alguma forma, foi o único que o disse claramente aos venezuelanos, deixou mensagens: perpetuem o chavismo. O cancro (que primeiro quis esconder, falou num abcesso pélvico) apanhou-lhe a revolução — morreu com 58 anos.

Poderá a criatura viver sem o criador?
 
 

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