O Brasil sempre à frente de si mesmo

1. Um amigo carioca, professor de cinema numa universidade pública, mandou-me um livro do Rio de Janeiro para o Alentejo. Quando escrevi a agradecer, disse-lhe que esperava que a infatigável polícia brasileira não o tivesse incomodado em casa. Ele respondeu que não: a cota dos professores detidos já estava preenchida. Bem-vindos ao pós-Copa 2014.

2. Porque é que a polícia brasileira havia de perder tempo a ir a casa deste académico, pai de família, activista desarmado? Boa pergunta. Mas a verdade é que perdeu tempo indo a casa de professores e estudantes, alguns adolescentes, para os levar detidos, em vésperas da final da Copa, na maioria das situações porque eles protestam nas redes sociais e nas ruas. Outra amiga, professora de Literatura, acentuou em caixa alta no mail que me mandou a falar dos colegas: “presos EM CASA”. Argentina de Buenos Aires, há anos no Rio, esta é duplamente uma história dela.

3. Professores e estudantes presos por “formação de quadrilha armada”? Escutas telefónicas comprovando a compra de fogos-de-artifício? Polícia de choque carregando a eito sobre activistas e repórteres (“uns animais”, resumiu o meu fotógrafo mais próximo)? Nada que não tenhamos visto antes. Por exemplo, a Presidenta Dilma Rousseff. Ela viu bastante disto quando era militante da extrema-esquerda e a polícia política a apanhou, e fez aquele retrato que se acha no Google logo à primeira busca por “Dilma Rousseff”, uma garota de óculos grossos e camisa aos quadrados, presa como guerrilheira no auge da ditadura brasileira. Gostava de saber o que acontece com estas pessoas quando, 45 anos depois, estão sentadas no Palácio do Planalto e acham um espelho.

4. Mas o Brasil é aquele país que tem uma Presidenta de esquerda (?) e mulheres que continuam a ir ao México e a Portugal para abortar, no caso das que conseguem arranjar dinheiro. No caso das que não conseguem, é como sempre foi, e era em Portugal, problema delas, não tivessem engravidado. Entre evangélicos, ruralistas e figurões da ditadura, muita gente no Congresso brasileiro ainda pode ser útil à coligação no poder, não convém aliená-la. O PT é um campeão daquela ginástica conhecida como “governabilidade”. A final da Copa, com os seus presos e a sua tropa de choque, coincidiu com eu estar a ler Imobilismo em Movimento, ensaio de Marcos Nobre sobre as últimas décadas do Brasil que explica bem este status quo progressivamente ufanista.

5. O momento em que o ufanismo baixa a bola (7-1) é o momento em que o statu quo mais teme, e portanto ataca. É que entretanto o meio-campo, o centrão, está de luto. Não vi o Alemanha-Brasil, e ri ao saber do 7-1, só dava para rir, de tão burlesco, como muito carioca fãzaço de futebol diria que só dava para rir, de tão ruim. A minha piada favorita é aquela em que às tantas da noite alguém escreve: já tem umas seis horas que a Alemanha não faz gol. Foi a minha carioca em Londres que generosamente me contou isso, apesar de eu estar a ser tão incompreensiva com a derrota do Brasil. Depois, mostrou-me o Facebook do meu primeiro mestre carioca e ele estava numa dor pós-7-1 de meter dó. E aí é como religião, não acredito no que ele acredita mas acredito nele. Para citar outro dos meus cariocas, tão anti-situação como antiviolência: se fosse fácil, era fácil.

6. Já outro amigo no Rio, sociólogo em fase de doutoramento, o que inclui dar aulas numa universidade pública, confessou-me ao fim de uma hora no Skype, que torcera pela Alemanha. Em jovem era tão fã de futebol que chegou a fazer teste para time. Hoje, quando conta isso aos alunos, eles caem na gargalhada só de o imaginar, zero de atleta. Falámos quando ele acabava de voltar do “ato”, o protesto no Centro do Rio de Janeiro contra a prisão de 19 activistas, incluindo professores e estudantes, incluindo aquela activista a quem chamam Sininho com a qual a Veja, no ano passado, engendrou uma das capas mais nojentas da história da imprensa, fazendo de Sininho uma espécie de saco-de-pancada do Brasil ufanista, uma Geni política (“Joga pedra na Geni! Joga pedra na Geni! Ela é boa de apanhar! Ela é boa de cuspir!”). A Veja dá 10-0 a qualquer activista quanto a caso de polícia. É, semanalmente, um caso de polícia. E vende mais de um milhão.

7. O “ato” tinha centenas de pessoas, menos do que o meu amigo e seus amigos esperavam. A sociedade brasileira é muito conservadora, diz ele, as pessoas compram a ideia de que esses activistas foram presos porque são violentos, e compram essa ideia dos media, que na melhor das hipóteses propagam uma neutralidade conciliatória. E pairando sobre tudo isto está o PT no poder, no qual o meu amigo já votou e não votará mais.

8. A história do meu amigo, que hoje mora no Rio, podia dar um vídeo-propaganda do PT. Paulista dos subúrbios, cresceu num bairro tão pobre assim: “A gente ia para a escola comer.” Hoje ele vai lá e “parece que houve uma revolução”. Vai lá e é doutorando de sociologia. Quando eu estava em Londres, ele tinha ido lá, feliz da vida. Mas essa “revolução” não aconteceu com Lula, ressalva, vem da ampla movimentação política que antecedeu a Constituição de 1988 e de processos que envolveram muitos actores políticos. “Vi isso acontecer no meu bairro antes do Lula, o crescimento atingia a todos. Meu irmão mais novo não passou nem um décimo da necessidade que eu passei. Houve um processo amplo.” Não há qualquer ambiguidade quanto a isto: “O Brasil hoje é muito melhor do que na década de 1980 e início de 1990. Posso dar minha família como exemplo de mudança estrutural.” Por tudo isto, o meu amigo é um crente no Estado. “A ideia anarquista é importante, mas na prática o Estado é um agente. É brutal, cruel quando o monstro está à solta, mas é um agente de transformação. O importante é ter uma reforma do aspecto repressor.”

9. No bairro do meu amigo claro que o futebol é uma festa, e ele esteve lá durante a Copa, mas no auge do seu corte com o futebol por discordar da “forma como a Copa foi usada para justificar arbitrariedades”, fazendo apelo a uma unidade patriótica. “Todos somos um, todos somos Brasil, essa confusão entre o país e uma selecção que é uma espécie de anúncio ambulante de marcas transnacionais, delírio patriótico, propaganda infame.” Tudo isso o impeliu a não torcer pelo Brasil. Então foi ver o Alemanha-Brasil num bar cheio de torcedores mas torceu secretamente pela Alemanha. “Cada golo era uma alegria.” Quando chegou aos 5-0 os próprios torcedores começaram a rir da situação, já esperando o próximo golo, então sentiu que não precisava mais esconder-se, podia troçar. “Quando o jogo acabou, fui para a Lapa beber, foi como lavar a alma. Torci contra sem nenhum problema. Selecção brasileira não é sociedade brasileira. Foi a maior derrota do futebol brasileiro na história.” Por isso mesmo, os efeitos não vão acontecer na sociedade? “Tem um impacto no ufanismo, vamos baixar a bola porque não somos isso tudo. Só não sei se isso não é só o intelectual brasileiro, que é uma casta. No meio intelectual e político, houve um impacto. Mas entre as pessoas comuns acho que não. Eu via as pessoas na fila do ônibus, brincando, sem nenhum fantasma.” Vai Brasil, sempre à frente de si mesmo.     

Foto
DAMIR SAGOLJ/Reuters

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