O Brasil em Quaresma político-judicial

Confio na justiça brasileira. Não confio é nesta concepção “quaresmal” da justiça.

1. O Brasil é, no quadro das chamadas economias emergentes, um caso singular. Fez a estabilização monetária, criou prosperidade económica e fomentou progresso social em democracia, com um padrão de respeito pelos direitos humanos. Ao contrário de outros BRICS, manteve e alargou os índices de liberdade de imprensa, não controlou as redes sociais, não fez dos meios de comunicação social um instrumento de propaganda (interna e externa). Esta capacidade de crescer económica e socialmente em democracia fez e faz do Brasil um exemplo.

2. Nem tudo foram rosas, porém. O sistema partidário foi sempre fragmentado e volátil, favorecendo o “tráfego” de votos, que, em muitos casos, termina em pura e simples “corrupção”. A corrupção dos decisores políticos, em todos os níveis e partidos, nunca deixou de ser um dado cultural endémico. Tirando o início do primeiro mandato de Dilma, não foi assumida uma linha política de combate à corrupção. A promiscuidade dos interesses, o compadrio, o tráfico de influências e a corrupção pura e dura continuaram a medrar e grassar por todos os poros e lugares.

3. O crescimento económico e social, como é óbvio, alargou o grau de exigência das populações para com os padrões éticos da classe política. E, entretanto, em paralelo, desenvolveu-se um escol de magistrados – herdeiros de uma riquíssima tradição jurídica – com consciência da natureza constitucional do poder jurisdicional nas sociedades democráticas. Essa consciência da função judicial como poder – e poder efectivo e “soberano” – foi favorecida pelo carácter presidencial do sistema político (com o efeito de imitação norte-americano), pela compreensão do papel dos tribunais nas sociedades poliárquicas do século XXI, pela percepção dos danos enormes que a corrupção causa ao país e pela intuição de um apelo e de um apoio popular a um maior activismo judicial.

4. É neste quadro complexo que a nomeação de Lula da Silva para o Governo da Presidente Rousseff, com o intuito ostensivo de dificultar a investigação criminal e de criar artificialmente um “foro” privilegiado é, sem meias palavras, uma desgraça. Uma tragédia política. A percepção do país degradou-se radicalmente. Num Estado que tinha granjeado o prestígio por dar passos de gigante em democracia aberta e numa sociedade livre e plural, a ideia do desrespeito pela independência do poder judicial e da manipulação institucional desfere um golpe fatal. Nem uma personalidade com o trajecto e o halo de Lula da Silva podia prestar-se a um papel só expectável numa ditadura centro-americana dos anos 50, nem Dilma Rousseff podia aceitar ser a promotora de uma artimanha institucional deste calibre. Uma coisa – perfeitamente razoável e compreensível – era a Presidente Dilma fazer uma declaração política de total confiança na seriedade e na actuação irrepreensível de Lula. Poderia até eventualmente alcandorar-se a alertar contra uma eventual precipitação, ligeireza ou até abuso do braço acusatório do poder judicial. Mas, em caso algum, é admissível, num Estado de direito e numa democracia com os pergaminhos que a democracia brasileira foi capaz de exibir nas últimas décadas, nomear para a chefia do Governo alguém sob investigação, apenas com o propósito de modificar a sua situação de imunidade, de alterar o foro judicial competente e de obstruir o normal decurso da justiça.

5. São muitos os que, em Portugal e no Brasil, falam em “golpe judicial” e agitam o espantalho da “república dos juízes” contra Lula. À cabeça de todos, sem qualquer surpresa, o PCP e o Bloco de Esquerda. Sem surpresa, porque estes partidos, como sempre tenho dito, não comungam da cultura da “rule of Law” e da democracia com separação de poderes tal como a vemos na tradição ocidental. E, por isso, à cabeça de tudo, está o preconceito ideológico. Quando os tribunais italianos não deram tréguas a Silvio Berlusconi e quando este procurava fazer legislação para se imunizar, PCP e Bloco aplaudiam. Quando Lula da Silva usa argumentos que não andam longe da retórica berlusconiana é afinal uma vítima do “golpe de Estado judicial” (que é o sucedâneo hodierno do golpe de Estado militar). Quando os Governos húngaro e polaco procuram domesticar o poder judicial, a democracia está em perigo. Quando Lula e Dilma lançam mão de um discurso parecido, chegou a inominável “república dos juízes”. Trata-se do mais básico “duplo padrão”. Já nem aludo ao clamor com que esses partidos e até o PS reagiam à mais leve crítica – de resto, salutar e necessária numa sociedade aberta – à jurisprudência do nosso Tribunal Constitucional nos tempos da troika.

Haverá decerto disfunções na actuação do poder judicial no Brasil, como há em todas as democracias. Estou à vontade para falar nisso, porque julgo, como bem sabe entre nós a comunidade jurídica profissional e académica, ter sido dos primeiros a tratar e a lançar a questão do lugar político e constitucional dos tribunais nas sociedades actuais. Que, quer gostem quer não, vai ser muito mais activo e interventivo que no passado e que obriga, justamente para evitar a forma pervertida do “governo dos juízes”, a repensar a sua legitimidade e responsabilidade.

Mas devo dizer que confio na justiça brasileira e, em especial, no seu Supremo Tribunal. Tem um registo sério e profundo e é presidido por uma das grandes figuras morais do Brasil actual: Ricardo Lewandowski. Repito, pois: confio na justiça brasileira. Não confio é nesta concepção “quaresmal” da justiça, própria das narrativas da paixão que ouvimos e ouviremos por estes dias. Uma concepção que olha politicamente para os julgamentos, oscilando entre Jesus e Barrabás, e em que são os príncipes dos sacerdotes e os escribas que instigam o povo a dizer quem deve ser condenado e quem deve ser solto. Pilatos lavou as mãos, mas nós, amigos do Estado de Direito, não podemos lavá-las.

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