O Brasil dividido em dois andamentos

As eleições de 2014 revelaram um fosso na geografia política do Brasil, com o PT a dominar nos estados pobres e o PSDB nos mais desenvolvidos. Num país que ainda vive a herança colonial da separação entre as classes, essa divisão torna-se uma ameaça. Que um escândalo de corrupção pode tornar real

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Pedro Vilela/Reuters

Quando os números do Tribunal Superior Eleitoral do Brasil tornaram irreversível a sua vitória nas eleições presidenciais de 2014, Dilma Rousseff reuniu os jornalistas numa sala de um hotel em Brasília e deixou ao país uma mensagem premonitória sobre as dificuldades que teria de enfrentar no segundo mandado: “Conclamo, sem excepção, a todas as brasileiras e brasileiros para nos unirmos em favor do futuro de nossa pátria. Não acredito que essas eleições tenham dividido o país ao meio”. Um ano e meio depois, a profecia de Dilma mostra estar errada e o seu apelo parece ter sido esquecido.

A fractura do Brasil, que se continuava a medir nas enormes diferenças entre os rendimentos per capita, entre o desenvolvimento dos estados da federação, entre uma vida do primeiro mundo do “asfalto” das cidades e a pobreza e a violência das favelas, agravou-se e criou duas barricadas sociais e políticas de difícil conciliação. De um lado, o governo, o PT e Dilma; do outro, parte importante do sistema judicial e a generalidade dos media; numa facção estão as classes de rendimentos mais altos das grandes cidades do sudeste e do sul do país; do outro lado os pobres e remediados do Nordeste e do Norte. Claro que uma divisão assim tão linear e simplista não preenche a pluralidade de uma sociedade moderna como a do Brasil; mas ajuda a entender um pouco melhor o que se passa no país por estes dias.

Nas manifestações contra o Governo que se multiplicaram desde o último domingo, apareceu um cartaz entre a multidão que diz muito sobre o que está em causa. Sobre o recorte de uma cara de Lula alguém escreveu um expressivo e enigmático “Fora Zumbi”. Zumbi viveu na segunda metade do século XVII e foi o último rei do Quilombo dos Palmares, um refúgio de escravos foragidos das fazendas coloniais localizado no actual estado de Alagoas. A associação entre Lula e um rei de escravos permite muitas leituras. A mais evidente e lógica é a de que para uma parte das elites brasileiras Lula se tornou num líder dissidente da normalidade política e se associou à causa de rebeldes pobres que ousam confrontar a matriz histórica do Brasil.

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PAULO WHITAKER/REUTERS

Se esta analogia ainda paira no consciente de milhões de brasileiros mais abastados, em 2002, o ano em que pela primeira vez Lula chega à presidência, pairava ainda mais. Nos anos do pós-guerra, os brasileiros tinham sido capazes de eleger presidentes trabalhistas, de forte pendor populista, como Getúlio Vargas ou, principalmente João Goulart. Mas já nessa altura a sua vitória era duramente contestada pelas elites, que através de uma aliança com os militares e o apoio velado dos Estados Unidos resolveram o problema com um golpe militar que instaurou uma ditadura, em 1964. Com o regresso da normalização, a esquerda brasileira tenta recuperar essa herança, mas, nas primeiras presidenciais, em 1989, quem ganha é um oligarca do Nordeste, Fernando Collor de Mello.

Lula conseguiria ser eleito à terceira tentativa e apenas depois de ajustar o seu perfil político aos padrões mais convencionais do centro. Passa a vestir fatos elegantes, faz dieta, promete que “Lula não quer briga” e numa Carta aos Brasileiros jura não romper contratos, manter as metas da inflação e aprovar orçamentos que mantivessem saldos orçamentais positivos. Mas não desistia de exigir que todos os brasileiros tivessem direito ao café da manhã (pequeno-almoço) todos os dias. Com este posicionamento, Lula consegue ganhar a primeira volta das eleições em todos os estados, com excepção de Alagoas (um feudo dos Collor de Mello) e do Rio de Janeiro, onde foi batido pelo ex-governador do estado Anthony Garotinho. Na segunda volta que disputou com José Serra, do PSDB (o partido de FHC e de Aécio Neves), porém, o mapa eleitoral do Brasil ficou vermelho. Lula ganhava nas grandes cidades e impunha-se também nos “grotões”, as pequenas cidades do Nordeste profundo.

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Essa vaga de fundo criada pela fase “Lula paz e amor” duraria, no entanto, apenas um mandato. Em 2006, Lula reelege-se contra Geraldo Alkmin, também do PSDB, mas já sem o brilho da campanha anterior. O mapa político do Brasil que hoje se extrema começa a ser desenhado nessa eleição. Alkmin ganha no remoto estado do Roraima, no Norte, nos estados do Mato Grosso, em São Paulo e nos estados do Sul e Lula garante o controlo da maior parte do Norte, de todo o Nordeste e ainda do Rio e de Minas Gerais. Num país em forte desenvolvimento, Lula perdia na sua base original, o mundo do trabalho de São Paulo, mas impunha-se aos oligarcas do país mais atrasado. Os efeitos dos seus programas sociais, como o Bolsa Família, o Pronaf (de apoio à agricultura familiar), o Luz para Todos (de electrificação rural), privilegiavam os interesses das camadas pobres do Norte e do Nordeste; pelo contrário, o crescimento económico valorizava o real e criava um obstáculo aos que, como o juiz federal que suspendeu a posse de Lula na quinta-feira, querem a queda de Dilma para comprarem dólares mais baratos e poderem “voltar a viajar para Orlando e Miami”.

Em 2006, “não houve uma divisão simplista entre a metade-norte e a metade-sul do país, entre um Brasil pobre e um Brasil rico, como poderia parecer, mas sim entre interesses específicos de diferentes grupos de eleitores”, concluía um estudo académico produzido, entre outros, pelo cientista político Cesar Romero Jacob. O que estava a acontecer era, afinal, a tradução política da “Belíndia”, a expressão cunhada pelo economista Edmar Bacha para mostrar um Brasil que era metade como a Bélgica e outra metade como a Índia. Em 2010, uma leitura mais fina dos resultados da primeira volta mostrava que essa oposição de interesses se estava a cristalizar não apenas na oposição entre o Norte e Nordeste pobres e o Sul e Sudeste ricos, mas também entre as cidades dominadas pela classe média e o mundo rural onde a pobreza era endémica. Nessa eleição, Dilma continua a dominar o interior dos estados pobres; mas em cidades como Salvador, Recife ou Fortaleza quem ganhou foi Marina Silva e em Natal ou Maceió a vitória coube a José Serra.

Entre 2010 e 2014, essa geografia eleitoral que parte o país a meio consolidou-se. Dilma ganhou a Aécio Neves com mais de 70% dos votos na Bahia, no Ceará, no Pernambuco ou no Maranhão; mas Aécio obteve mais de 60% dos votos em estados mais ricos como São Paulo, Paraná ou Santa Catarina. Ao contrário da tradição eleitoral do Brasil, controlar São Paulo, que representa 22% dos votos e mais de um terço da riqueza do país, já não significa controlar o destino político da nação. A política social do PT tirou milhões de pessoas da pobreza, retirou o país do mapa da fome da ONU e tornou o Brasil um lugar mais habitável e humano. Mas, ao mesmo tempo, criou uma âncora eleitoral que torna o PT imbatível. “Nós colocámos os pobres no orçamento”, dizia Dilma. Ao todo, o governo alimentava 18 programas sociais que beneficiam 87 milhões de pessoas. O Bolsa Família chega a 22% do eleitorado mais pobre e o Minha Casa Minha Vida promoveu a construção de 3,6 milhões de casas. São Paulo pode ter 32 milhões de eleitores, mas o Nordeste tem ainda mais.

A campanha eleitoral 2014 mostrou desde o primeiro momento que a vontade soberana da maioria era dificilmente aceite por parte das elites. Os nordestinos foram muitas vezes descritos como portadores de votos comprados com o erário público. No outro extremo da barricada, o PT de Lula pode estar em erosão ética e em desagregação política, mas para muitos milhões de brasileiros ainda é o partido que os salvou da miséria. Não que os mais ricos tenham perdido espaço no Brasil – desde 2002 o rendimento dos 25% mais abastados cresceu 13%, de acordo com as estatísticas do instituto oficial, IBGE; mas nesse compasso de tempo, o rendimento dos 25% mais pobres aumentou 45%. Socialmente, o Brasil é hoje um país mais justo e menos sul-americano; mas, como se vê, essa aproximação está longe de criar um maior consenso político. Principalmente quando essa fractura social e política é exposta na sequência de casos dantescos de corrupção. 

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