O bairro onde os irmãos Kouachi viveram e onde quase ninguém quer falar

Nasser, nascido na Argélia há 53 anos, é dos poucos habitantes do 19.º distrito de Paris disponíveis para conversar. Passou por orfanatos e trabalho na prevenção social. “Podia ter sido eu. Acho que o que me salvou foi escrever”, diz.

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“Ninguém confia em ninguém. A polícia desconfia dos jovens e eles desconfiam da polícia" REUTERS/Youssef Boudlal

Não é fácil encontrar quem tenha vontade de falar sobre a vida no distrito administrativo 19.º de Paris, formado por quatro bairros na ponta nordeste da cidade. “Há mais de 100 mil pessoas nesta zona. Eu não tenho nada a dizer”, afirma uma senhora parada à conversa com uma amiga, tomada por uma pressa repentina, “muito atrasada” para ir buscar a neta.

Estamos numa das extremidades da Rua da Crimeia, 2,5 quilómetros que cruzam o enorme distrito, atravessam a ribeira da Villette e sobem até ao Parque Buttes-Chaumont, que deu nome à célula de recrutamento que entre 2003 e 2005 terá enviado uma dezena de jovens para combater a ocupação norte-americana no Iraque. Era no parque que estes jovens se encontravam então, para correr e conversar. Dois deles eram os irmãos Cherif e Saïd Kouachi, que atacaram a redacção do jornal satírico Charlie Hebdo na quarta-feira, matando 12 pessoas, e foram mortos pela polícia na sexta-feira à tarde, numa cidade a nordeste de Paris.

“Estou cansada e não quero saber de nada”, responde, visivelmente irritada, uma senhora que passeia o cão ao final do dia, no Parque Buttes-Chaumont.

Na verdade, vivem aqui quase 200 mil pessoas. O Espaço 19, centro cultural e social público, tem sete portas abertas em diferentes pontos do distrito. Os responsáveis desculpam-se e dizem não ter tempo para falar, mas disponibilizam o jornal editado no fim do ano com um balanço das actividades. Pelos diferentes centros do Espaço 19 passaram pessoas de 54 nacionalidades, mais de um terço das famílias acompanhadas está “em situação de pobreza” e 44% têm três ou mais filhos.

Na Fundação Jeunesse Feu Vert a resposta é clara. “Lamento, mas não falamos com jornalistas. Não temos nada a dizer sobre estes acontecimentos”, justifica Karim, director da sede local do grupo.

A uns metros da fundação, encostados à porta de uma loja de Internet e venda de cartões de telefone, um grupo de jovens também tem pouca vontade de conversar. “Terminei o liceu, passei os meus exames e agora não tenho trabalho”, lá diz Tourée, 21 anos, mãe nascida no Mali, chegada a França há 30 anos. “A vida aqui é boa, boa”, diz Tareq, mãos nos bolsos. “A sério, é uma merda. Todos os meus amigos estão no desemprego. E acho que está cada vez pior. Antes, o bairro era mais aberto. Agora, saímos de casa e parece que estamos numa prisão”, afirma, a apontar para as grades exteriores que rodeiam muitos dos edifícios de habitação da zona.

Desconfiança e polícia
Não é difícil encontrar grupos de adolescentes e jovens parados à conversa, encostados à porta de cafés ou à entrada dos prédios. “Só nos faltava isto. A polícia já gostava de nós. Mas antes eram só eles que nos visitavam. Agora vêm jornalistas. É o terrorismo”, diz, em tom jocoso, um jovem de 19 anos, à entrada do Bar Cham, um café gerido por argelinos a dois quarteirões do Parque Buttes-Chaumont onde uma dezena de miúdos passa o tempo em frente à televisão.

“Ninguém confia em ninguém. A polícia desconfia dos jovens e eles desconfiam da polícia, claro. Os chuis vêm muitas vezes, à noite”, diz um dos empregados do Cham, 56 anos, que recusa dizer o nome. “Nem pensar, há a câmara municipal, os chuis.” O empregado que trabalha aqui há 14 anos também vive por perto. “Já vivi em Aubervilliers. É igual. Há 15, 20 anos era diferente, mais tranquilo. Mas a vida mudou.” Aubervilliers é um município da região de Seine-Saint-Denis, o subúrbio imediatamente a norte.

Como noutras zonas de Paris, esta segunda-feira o distrito 19.º tem soldados junto às escolas e polícias militares nas estações de metro. “É chocante, chocante. Eu já nem sei se fique cá”, diz Fatimah, 30 anos, muçulmana de origem tunisina que vive num dos grandes prédios de habitação com as grades de que fala Tareq. Fatimah põe a hipótese de deixar Paris. “Não sei, tenho família na Bélgica, se calhar o melhor é ir-me embora.”

Sinagogas e mesquitas
“Eu só trouxe os meus filhos à escola por saber que a segurança estava reforçada”, afirma Hanna, judia que traz pela mão o filho de 11 anos, kippa na cabeça, e vai a caminho da creche, buscar a mais pequena. “Sabe que já houve aqui uma sinagoga atacada? É uma loucura.” Foi sábado, confirma um dos soldados enviados para reforçar a segurança. Uns petardos foram lançados contra a sinagoga Michkenot Israël com 150 fiéis no interior.

O Governo prometeu protecção especial para todos os locais de culto judaicos – na sexta-feira, Amedy Coulibaly, considerado cúmplice dos irmãos Kouachi, atacou uma mercearia kosher (onde se vendem alimentos que respeitam as regras judaicas) em Paris, matou quatro pessoas e fez outras 15 reféns até à intervenção policial que terminou com a sua morte. Os representantes muçulmanos fazem o mesmo pedido: o Ministério do Interior contabiliza mais de 50 actos antimuçulmanos desde quarta-feira: 21 ataques, com tiros ou granadas lançados contra mesquitas, e 33 ameaças.

Aqui não há mesquitas, só pequenas salas de culto dentro de prédios. Havia uma, a mesquita Addawa, frequentada há mais de dez anos por Cherif Kouachi, há muito demolida e com reconstrução planeada mas sucessivamente adiada. Os dois irmãos nasceram em Paris, filhos de argelinos, Saïd em 1980, Cherif em 1982, mas foram criados num orfanato em Rennes, no Noroeste do país, e regressaram depois à capital, ao 19º. Cherif trabalhou por aqui, num supermercado, a distribuir pizzas.

Antes e depois da prisão
Foi nessa altura que Cherif conheceu Farid Benyettu, o jovem que as autoridades consideravam o “ideólogo” da “célula de Buttes-Chaumond”. Cherif decidiu viajar para o Iraque, mas foi detido antes de o fazer. Os advogados que os defenderam falam de “jovens perdidos” que viram na mesquita uma “possibilidade de família”.

“Eles queriam ser os melhores muçulmanos”, diz Dominique Many, um dos advogados do grupo, citado pelos jornais franceses. Cherif foi a tribunal em 2005 e agradeceu ter sido travado antes de chegar ao Médio Oriente, garantindo que tinha dúvidas e vontade de desistir. Foi condenado a três anos de prisão, transformados em 18 meses de pena suspensa por já ter cumprido dois anos de prisão preventiva.

“Ele estava muito mais radicalizado quando foi julgado, em 2008, do que em 2005”, recorda Many, ouvido pelo New York Times. “Talvez tenha sido na prisão que se tornou no Kouachi que conhecemos nos últimos dias.” Farid, libertado em 2011, formou-se entretanto em enfermagem.

Cherif voltou a ser interpelado em 2010, desta vez com o irmão. Acusados de conspirarem para libertar da prisão Smain Ait Ali Belkacem, antigo dirigente do Grupo Islâmico Armado argelino, condenado por um atentado que matou oito pessoas num comboio de Paris em 1995, foram ilibados por falta de provas.

Orfanatos e prevenção
Nasser, 53 anos, 30 em França, dez no distrito 19.º, não se importa de falar sobre o bairro e os atentados. “Isto impressionou-me muito, o meu percurso foi semelhante”, explica. Nasser veio da Argélia com a mãe, mas viveu grande parte da adolescência em orfanatos, nos arredores de Paris e em Bordéus.

“Muitos destes jovens cresceram em instituições que não lhes oferecem grande coisa. Exige-se o cumprimento do regulamento interno, mas não se está realmente atento. E não era assim tão difícil, os miúdos difíceis não são muitos”, diz. Os problemas começam aí, defende Nasser, que trabalhou muitos anos na prevenção social, em centros de bairro, mas desistiu e agora se dedica à escrita e à música. “Aqui, por exemplo, não me quiseram por viver cá. Acharam que estava muito próximo dos jovens. As pessoas que fazem este trabalho só querem cumprir um horário, quando deviam ter um sentido de missão, de sacerdócio.”

Nasser fala de jovens que “vivem o dia-a-dia”, sem perspectivas, que nunca “aprenderam realmente a viver em sociedade”. Depois, “depende do bairro aonde vão parar”. “Cada bairro tem um espírito e esse espírito define a tendência, o poder, como na política. Educação, prevenção social não significa organizar umas férias de vez em quando, como fazem os centros. É preciso conhecer os grupos, identificar quem tem o poder e recuperar essas pessoas.”

“Podia ter sido eu. É isso que me angustia”, explica. “Acho que o que me salvou foi escrever”, afirma. “Num dos meus primeiros textos, escrevi: ‘Fizeram de mim um assassino, mas o meu imaginário não deixou.”

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