O armazém das oportunidades

Cerca de 10 milhões de jovens brasileiros entre os 15 e os 29 anos não estudam nem trabalham. E muitos nem sequer procuram emprego. O Galpão Aplauso é um projecto que tenta incluir estes jovens no mercado de trabalho.

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Ivonette Albuquerque é uma mulher de classe média-alta. Mora no Leblon, um dos bairros mais luxuosos do Rio de Janeiro, de frente para a praia, ao lado de Ipanema e Copacabana. É economista. Durante muitos anos, trabalhou nos mercados financeiros. “Só ganhava dinheiro e viajava”, conta, num restaurante do seu bairro, numa rua em que o Rio de Janeiro parece Paris ou Londres. Jovens bonitas e bem vestidas conversam, fumam e bebem à porta de restaurantes e bares bem decorados. Falam de forma animada, isoladas da pobreza dos morros que estão ali perto, a pouco menos de um quilómetro. Era este o único mundo de Ivonette, até que um acontecimento “dramático” lhe mudou a vida.

“Há 12 anos, a minha família sofreu um assalto. Ladrões entraram na minha residência e, com actos de violência, roubaram muitas coisas”, conta Ivonette, que foi trancada na casa de banho com o filho, sob ameaça de morte. O assalto foi um momento traumático. “Fiquei com muito medo da cidade do Rio de Janeiro”, diz a economista, cuja primeira reacção foi blindar a casa e instalar câmaras de segurança. Nestes bairros cariocas não há prédios sem porteiro e segurança. E quase todos têm grandes portões de ferro a vedar o acesso.

Os assaltantes eram “muito jovens”, “pareciam menores de idade”. Isso mexeu com Ivonette. Além do medo, que não parava de crescer, o assalto despertou uma curiosidade: perceber “como, e porquê, uma criança se transforma num jovem com um teor de violência tão exacerbado”. Aquela ideia ficou a pairar-lhe na mente enquanto os amigos lhe diziam para vender a casa e a tentavam convencer a comprar um carro blindado. Um dia, deu uma volta num desses automóveis à prova de bala e sentiu um click. “Vi que o medo só ia aumentar muito e que não ia ter fim. Precisava de fazer alguma coisa diferente”, diz Ivonette, que resolveu ir “contra o medo”. Apesar de nunca ter feito trabalho social, na madrugada daquele dia em que recusou comprar um carro blindado, sentou-se ao computador e desenhou o conceito do Galpão Aplauso, uma organização não-governamental que educa jovens pobres para o trabalho na área das artes ou da indústria. A ideia é passar-lhes conhecimento “para poderem ter uma oportunidade de emprego, terem uma outra vida, terem opção na vida”.

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Aos 58 anos, Ivonette continua a morar no Leblon, mas passa boa parte dos dias do outro lado da cidade, na zona portuária do Rio de Janeiro. É um outro mundo. A rua tem um ar decadente, dali não se vê o mar e os velhos armazéns do porto estão a cair aos pedaços. Naquela rua de armazéns ferrugentos, há um que se destaca: um graffito no muro anuncia “Número 50, Galpão Aplauso”.

Este armazém fica próximo do principal terminal de autocarros da cidade e das duas maiores estações de comboios. Também por isso vem gente de todos os pontos do Rio de Janeiro. O espaço é grande: 14 mil metros quadrados, o equivalente a dois campos de futebol. Há vários edifícios, onde são dadas as aulas: de português e matemática, teatro, dança, música, circo, artes plásticas e também as oficinas de serralharia e construção civil.

O projecto tem um público bem direccionado: jovens de comunidades pobres (o eufemismo para favelas), cujo rendimento familiar não seja superior a 700 dólares (500 euros). “Hoje temos milhões de jovens que são conhecidos como os ‘nem-nem-nem’. Nem estudam, nem trabalham, nem procuram emprego”, diz Ivonette. “São jovens que ficam dentro das comunidades, sem fazer absolutamente nada. Ao mesmo tempo, temos uma indústria pujante, que tem muitas vagas de emprego para o nível básico inicial”, acrescenta. O objectivo do Galpão Aplauso é precisamente fazer a “ponte” entre esses dois mundos: “A gente constrói uma ponte entre esses jovens, que estão do outro lado, e as empresas, que estão do lado de cá.”

A metáfora dos dois lados ilustra bem como há dois mundos que não comunicam entre si. Os últimos dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT) demonstram que cerca de 21,8 milhões de jovens da América Latina não estudam nem trabalham: cerca de 5,1 milhões estão desempregados e não encontram emprego; 11,9 milhões, na maioria jovens mulheres, não trabalham e dedicam-se a tarefas domésticas; e 4,6 milhões não estudam, não trabalham, não procuram emprego e nem sequer se dedicam a afazeres domésticos. 

No Brasil, os “nem-nem” representam 19% dos jovens entre os 15 e os 29 anos. Ou seja, cerca de dez milhões de jovens brasileiros não trabalham, nem estudam. É praticamente o total da população portuguesa — em Portugal, segundo o Instituto Nacional de Estatística, há quase 400 mil de jovens “nem-nem”, entre os 15 e os 34 anos.

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Marvin, 23 anos, soube do Galpão através de um amigo

“A grande propaganda é o boca a boca”

Um jovem que não trabalha nem estuda vive em desespero. Era isso que acontecia com Juliana França, antes de chegar ao Galpão Aplauso. Tinha 25 anos, a mãe morrera há pouco tempo, o pai já há muito. Não tinha irmãos. Vivia (e ainda vive) em Anchieta, no morro do Chapadão, uma das áreas mais perigosas do Norte do Rio de Janeiro. “Nunca me envolvi [no tráfico de droga] porque não deu tempo. Estava desempregada, morando na casa dos outros por favor, sem trabalhar”, diz, falando depressa, ansiosa por contar a sua história. O Galpão Aplauso salvou-a dos maus caminhos. Fez o curso geral — que inclui aulas de Português, Matemática, Teatro e Cidadania —, depois o de solda, e finalmente o de alpinismo industrial, o que lhe permite fazer trabalhos em sítios onde os outros não chegam.

Juliana, agora com 28 anos, voltou a estudar e completou o segundo ciclo, seguindo os conselhos que lhe deram no Galpão. Soube deste projecto através de uma amiga. É assim com quase todos. “A grande propaganda é o boca a boca”, diz Ivonette, que só mesmo no início distribuiu panfletos e cartazes pelas várias comunidades cariocas. 

Adrielle (16 anos), Mateus (15) e Marvin (23) também souberam por amigos da existência deste projecto. Hoje é o primeiro dia deles no Galpão. Estão na aula de selecção. No enorme armazém, logo à entrada, 120 rapazes e raparigas fazem os exercícios sob as ordens do professor Christian Landi. Só que não há quadro, nem cadeiras, nem mesas, nem livros. Estes exercícios chamam-se dinâmicas. Numa delas, os alunos juntam-se aos pares, um fica com os olhos vendados e o outro indica-lhe o caminho. A seguir, um deixa-se cair para trás e o outro tem de o apanhar. E depois, outro exercício: colocam-se todos em círculo e cada um bate palmas, quando chega a sua vez. É o passa-a-palma. 

Parecem brincadeiras de recreio de escola, mas na verdade são dinâmicas para trabalhar a confiança no outro e para despistar casos graves de uso de drogas. Muitos dos rapazes e raparigas que aqui chegam conviveram com o tráfico ou o consumo. Ninguém gosta de falar disso, apesar de a droga não ser motivo de exclusão, excepto em casos graves. “Às vezes, aparece alguém com mais sequelas por muito tempo de uso de drogas, de crack, e não consegue ter uma boa coordenação motora. Vê-se logo”, explica o professor Christian Landi, que dá aulas de teatro e de “valores e virtudes”. “Para lidar com o crack, não temos conhecimento”, acrescenta Ivonette, explicando que nesses casos excepcionais não aceitam a inscrição.

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Um ensino nada tradicional

Estes exercícios lúdicos nas primeiras aulas são também o rosto do método de ensino do Galpão. No início, o projecto tentou a abordagem tradicional, com aulas normais para jovens que precisam de obter uma qualificação para arranjar emprego. E não funcionou. “Descobrimos que não conseguiam aprender pelos instrumentos de conhecimento formais, como a leitura”, explica Ivonette. Não funcionava colocá-los imediatamente numa sala de aulas, com professores, quadros, cadeiras e livros. Muitos ainda estão na fase da oralidade. Ao tentar perceber como era a vida desses meninos e qual era a forma ideal de os ensinar, a directora do Galpão descobriu inspiração na figura das avós. “Por trás de muitos destes meninos, tinha uma mulher. Os pais já estavam mortos, presos ou tinham ido embora. E normalmente essa mulher é uma avó, que ensina tudo com muito afecto, e fazendo as coisas com eles. Ali estava a chave da história. A gente descobriu que se contássemos as coisas para eles, como as avós fazem, eles aprendiam. A figura da avó foi uma luz que nos mostrou o caminho.” 

Mateus, de 15 anos, é um desses jovens, com uma mulher por trás: não uma avó, mas uma tia, que cuida dele, porque o pai morreu e a mãe não tem condições para o criar, porque tem de cuidar de duas crianças pequenas. Mora em Duque de Caxias (um município a norte do Rio de Janeiro) e quer ser músico nas Forças Armadas. Já toca saxofone na igreja e no Galpão quer seguir as aulas de música. Antes, porém, terá uma disciplina nova: “valores e virtudes”. “A nossa primeira aula é ensinar o por favor, com licença e obrigado”, conta Ivonette, que já deixou os mercados financeiros. “Agora essa é a minha principal actividade e parei de ganhar dinheiro”, diz, entre sorrisos.

No período entre os exercícios, os jovens oscilam entre a timidez de quem chega a um espaço novo, com gente desconhecida, ainda por cima com jornalistas por perto, e a alegria de descobrir algo novo. “Estou aqui para fazer amizades. Normalmente, nestes sítios, encontramos pessoas com interesses iguais aos nossos”, afirma Marvin, de 23 anos, junto a uma parede cheia de grafitti, feitos por antigos alunos. Promete que vai voltar a estudar na escola e quer fazer música e teatro no Galpão. “Trabalhar com jovens é trabalhar com esse universo todo. Eles estão descobrindo a sexualidade, o amor, todas essas coisas, e temos de saber lidar com isso. Há uma certa euforia neles”, analisa Christian Landi, o professor.

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No Brasil, os “nem-nem” representam 19% dos jovens entre os 15 e os 29 anos

Coragem, confiança, cautela

Nas colunas do velho armazém, estão colocadas folhas com algumas palavras: coragem, confiança, cautela. São os conceitos trabalhados nessas aulas de valores e virtudes. Christian explica que depois dos exercícios mais lúdicos — os tais da “linguagem do afecto” que eles melhor compreendem — segue-se a reflexão, a discussão sobre o certo e o errado. Será difícil conversar com estes jovens? Christian diz que não. “A gente tem um facilitador, porque nunca ninguém pediu a estes jovens para ouvir o que eles pensam. Normalmente cortam-lhes os pensamentos.”

Landi tem 38 anos, é formado em artes cénicas pela Universidade do Rio de Janeiro e qualifica o seu trabalho como “transformador”. “Você não fica a mesma pessoa. Você revê os seus valores o tempo todo. Se dou uma aula de tolerância, saio daqui e sou tolerante no trânsito. Então acabamos por praticar as coisas fora daqui”, exemplifica, enquanto os alunos fazem fila para o almoço, que comem numa esplanada ao lado das oficinas e da sala de espectáculos.

Juliana adorou estas aulas de virtudes e valores, elegendo a cautela como o princípio que mais aprecia. “Se uma pessoa não tiver cautela, não tem nada. Se não tiver cautela, acaba por ir para lugar ruim”. Ivonette sente que estas aulas de comportamento são valorizadas pelos empregadores. “É nas habilidades humanas que a gente tem um diferencial. Esses jovens vão chegar ao mercado com valores que o mercado está precisando. Esses jovens tem solidariedade, porque na pobreza a gente é solidária. Eles estão levando a solidariedade que têm na pobreza para dentro das empresas e disso os empresários estão gostando e vêm aqui pegar mais jovens.”

O Galpão é financiado por vários patrocinadores. O principal é o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), que propôs este projecto para um prémio atribuído pelo Departamento de Tesouro americano. Há também parcerias com empregadores. O orçamento e o número de jovens depende dos patrocínios. Para ter o projecto mais ambicioso em marcha, são necessários três milhões de reais (quase um milhão de euros) por ano.

Normalmente, há aulas três ou quatro vezes por semana. No primeiro ano, faz-se um pouco de tudo: teatro, dança, música, artes plásticas, além de aulas de reforço de Matemática e Português. “A escola pública no Brasil é muito fraca”, queixa-se Ivonette. Nas aulas de Português e Matemática, o método também foi adaptado. “Se damos fracções, usamos fatias de pizza como exemplo”, explica a directora. “Só numa segunda fase explicamos no quadro, de forma tradicional”.

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Alex, mais conhecido como "Lequinho", tem 24 anos e já foi aluno, monitor e agora é actor da companhia de teatro Aplauso

De que é feito um homem

O método de ensino e as artes acabam por ser uma forma de atrair os jovens. O facto de receberem almoço e dinheiro para o transporte (60 dólares/45 euros por mês) também ajuda. No segundo ano, a maioria dos jovens que integram este projecto acaba por seguir as oficinas de serralharia, construção civil ou naval (90%). São as que oferecem maiores saídas profissionais. “Nos últimos quatro anos, acompanhámos 1000 jovens. Desses, 87% trabalham na economia formal, com carteira assinada, a maioria (65%) nas áreas de soldadura e serralharia.”

Augusto, professor de desenho e solda, diz que os alunos chegam “zerados” e em seis meses aprendem a soldar. Primeiro, ficam a saber como se desenha uma peça e como se preenche uma ordem de serviço. E no tempo do curso têm de fabricar 16 peças: cadeiras, grades, escadas, baldes do lixo e carrinhos de transporte de malas, por exemplo. “Ainda hoje recebi mais dois convites de empresas”, diz Augusto, afirmando que já colocaram 150 alunos num só estaleiro.

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Em frente à oficina de serralharia, fica a sala de espectáculos, onde a companhia de teatro ensaiou há pouco uma peça chamada De Que É Feito Um Homem. O teatro é mais uma forma de ensinar pela oralidade e é aqui que os mais talentosos usam também conhecimentos de música, dança e circo. São eles que criam as músicas e até as histórias, muitas vezes inspiradas nas próprias vidas ou no que viram acontecer aos vizinhos do lado. 

Na peça que agora vemos, contam-se histórias de vidas complicadas, de encontros e desencontros. “A minha mãe pensou em desistir de mim”, ouve-se a dada altura. “Eles se drogavam. Um dia a polícia invadiu a casa deles. Entraram, atiraram e mataram Mussum. Depois disso, eu nasci. Nasci nesse caos, um homem invertido.”

Ou simplesmente relata-se o dia-a-dia de comunidades carenciadas. “Onde eu moro falta muita água. Fica todo o mundo sem poder tomar banho, lavar roupa, limpar o banheiro. É um desespero. Por outro lado, quando chove é muita água”, diz um dos actores, contando a história de como em Duque de Caxias as famílias se habituaram a criar prateleiras e mezaninos para colocar os móveis e electrodomésticos quando há inundações.

A narrativa não saiu da imaginação de ninguém. Foi algo trazido por Alex. Conhecido como Lequinho, Alex já fez um pouco de tudo no Galpão: foi aluno, monitor e até professor de música durante um curto período. Agora, faz parte da companhia de teatro Aplauso, enquanto espera a chamada para a Marinha mercante, depois de ter feito um curso também através do Galpão.

“Espero que o meu emprego dê para comprar uma casa ou derrubar aquela e construir uma nova, maior e mais alta, para que não entre água”, diz Lequinho, que agora já só pensa em casar e construir família, algo a que nem todos podem aspirar em Duque de Caxias: “Lá tem bastante problemas de drogas”, afirma este jovem de 24 anos, que viu amigos morrerem por causa do tráfico e da violência: “Esse projecto mudou tudo na minha vida. Se não estivesse aqui, poderia estar a fazer algo diferente. Poderia até estar a fazer algo errado, quem sabe.” E Lequinho acrescenta que não foi só a vida dele a mudar: “Muita gente saiu daqui com emprego e desviou-se de muita coisa errada”, conta, dando o exemplo de um amigo que era “meio envolvido com o tráfico” e agora está na Marinha.

A violência e a droga são problemas muitos presentes na sociedade brasileira. E estes jovens não escapam a isso. Ivonette lembra-se de grupos de miúdos que na hora dos trabalhos manuais faziam armas de papelão. Era a realidade que conheciam. Agora, sente menos o problema da violência e até da carência alimentar — “nota-se que comem melhor” — mas identifica um novo problema: o endividamento dos jovens.

“Em cada cinco jovens que chegam ao Galpão Aplauso, três estão endividados, principalmente com bancos. E dívida com banco é dívida para sempre, porque os juros no Brasil são muito altos”, explica a economista, que encontra duas razões para a maior facilidade de crédito, mesmo nas classes baixas. Uma são as medidas de apoio social, como a Bolsa Família, que garantem algum rendimento a famílias que antes não tinham nada. A outra é o salário de muitos empregos informais ser pago por conta bancária. Ambas as situações abriram portas para que milhões de pessoas tenham acesso a crédito. “Como têm esse recurso, o banco empresta, porque sabe que eles vão receber esse dinheiro todo o mês. Aí, eles pegam mais do que podem pagar e ficam em situações dramáticas, de não conseguir a dívida”, acrescenta Ivonette, falando de uma “geração de consumo”.

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Os jovens saem do Galpão com preparação para o mercado de trabalho, seja indústria ou artes

Esse fascínio pelo consumo é visível. Apesar de serem jovens com poucos recursos, muitos deles estão com telemóvel na mão e trocam impressões sobre os relógios, ténis e roupa que cada um usa. “Existe uma demanda reprimida instalada nesses jovens que são muito pobres. Por que é que o rolezinho [as novas manifestações de jovens da periferia] é no shopping? Porque é o centro de consumo”, afirma Ivonette, para quem esse novo problema do endividamento só será resolvido distribuindo “riqueza e não só renda”: ou seja, dando formação e emprego aos jovens, para que “possam mudar de vida”.

"Eu sou uma pessoa muito melhor"

Juliana é um exemplo. Quando tinha 20 anos, a mãe morreu. Já não tinha pai. Ficou sozinha, com um funeral para fazer. Não tinha dinheiro. A solução foi pedir emprestado. “O banco liberou 1500 reais [perto de 500 euros ao câmbio actual]”, conta a agora soldadora. Sem emprego, Juliana não tinha como pagar ao banco. Ficou desesperada e só conseguiu livrar-se das dívidas depois de fazer o curso de solda e começar a ganhar dinheiro.

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Acabou por ficar a trabalhar no Galpão, até porque o velho armazém precisa de muita manutenção. Faz um pouco de tudo e não podia estar mais feliz: “Estou quase comprando casa própria. Moro em casa de aluguer, junto dinheiro, tenho estabilidade. Tudo o que eu sempre quis, eu tenho.”

Além do lado material, Juliana também mudou de mentalidade. “Hoje sou mais pessoa. Vejo uma realidade diferente. Sei o que é honestidade, o valor do ser humano”. Palavras muito parecidas com as de Ivonette, a mentora de um projecto que lhe mudou completamente a vida. “Eu sou uma pessoa muito melhor. Exerço no meu dia-a-dia virtudes humanas que nem sabia que existiam. Descobri que ser uma pessoa boa é muito bom”, diz a directora do Galpão. “Estou próxima dos que precisam de tudo, e também preciso de muito. Essa troca permanente é um privilégio e tenho certeza que hoje ocupo o melhor emprego do Brasil. Agradeço a Deus por isso.”

Ivonette é uma mulher feliz. Juliana também. O mundo delas mudou, mas isso não quer dizer que o mundo lá fora tenha mudado assim tanto. Ivonette vive no mesmo Leblon, com prédios blindados para gente rica. Juliana vive na mesma comunidade, no morro do Chapadão, onde a violência, o tráfico de droga e os raides policiais são uma constante. Já perdeu amigos e tenta convencer alguns a virem para o Galpão. Um deles veio e “agora está com outros pensamentos”. De resto, quase tudo “é a mesma coisa de há dez anos”, diz Juliana, com ar resignado: “A única coisa que mudou naquele lugar fui eu.”

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