Nova troika: Tsipras, Juncker e Cícero

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Jean-Claude Juncker, presidente da Comissão Europeia, foi de uma clareza cortante ao colocar o dedo na ferida: “Pecámos contra a dignidade dos povos, especialmente na Grécia, em Portugal e na Irlanda.” Numa frase, puxou o tapete a Durão Barroso e a Angela Merkel e pelo caminho desfez a forma que a Europa inventou para aplicar “solidariedade”.

O timing é decisivo. Desde que o Syriza subiu ao poder de Atenas que vivemos em permanente guerra semântica. No meio de tanto bluff, Juncker foi o mais genuíno. Juncker, esperamos, acredita que a dignidade é crucial em política e que não foi boa ideia colocar técnicos a negociar com primeiros-ministros eleitos directamente por cidadãos. Numa frase, disse o que Barroso não conseguiu dizer em cinco anos.

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Vendedor de lotaria em frente ao Banco da Grécia. Atenas, 17 de Fevereiro ALKIS KONSTANTINIDIS/REUTERS

Quando deixou Bruxelas, Barroso defendeu que, “se não fosse um português à frente da Comissão, a orientação [para Portugal] teria sido muito mais no sentido do rigor, sem a dimensão social”. Mas pelo menos desde o Verão de 2012 que ouvimos pessoas sensatas dizer que os governos sob resgate não deveriam discutir com os técnicos da troika, mas sim ir às sedes da troika discutir o seu futuro. Em 2013, já Portugal tinha dois anos de austeridade, a directora do FMI assumiu que o Fundo cometera “erros” e que a Grécia e Portugal deveriam ter tido “mais tempo”. Como Juncker, Christine Lagarde foi explícita: a troika “pediu de mais, demasiado rápido”. De tudo isso, ficou um problema: nada de substancialmente novo aconteceu.

E aqui estamos agora a ouvir Juncker explicar-se: “Eu era presidente do Eurogrupo e pareço estúpido em dizer isto, mas há que retirar lições da história e não repetir os erros.” Juncker montou uma Comissão Europeia que promete renovação. Ele próprio é conhecido como o “democrata-cristão mais socialista da Europa”. Mas se o seu mea culpa não gerar mudança é tempo perdido. Outra vez. O consolo da admissão do erro não basta. Barroso saiu com a imagem de um presidente que não fez frente à Alemanha. Será a busca da dignidade perdida o que vai fazer Juncker convencer a Alemanha a ceder?

Cícero, sempre Cícero, gostava da palavra “dignidade”. Foi dos que mais a usaram na Antiguidade. A última coisa que disse em vida — aos carrascos que o assassinaram — revela a sua ironia delicada, mas também a importância que atribuía à ideia: “Pelo menos, cortem a minha cabeça como deve ser.” Se dignidade é o direito a ser tratado com respeito, pelo menos que a sua morte não fosse uma depravação degradante. Se o iam matar, que o matassem com correcção. Juncker conhece a força das palavras. Juntou-se aos homens que centram o discurso público na ideia de dignidade e criou uma nova e improvável troika: Tsipras, Cícero e ele próprio.

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