Nos Camarões, o regime criou refugiados da Internet

Duas regiões em luta contra o poder central estão offline desde Janeiro. Para aceder à Internet, há quem recorra a um campo de refugiados virtuais ou quem pague para levar o telemóvel à fronteira.

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REUTERS/Siegfried REUTERS/Siegfried Modola

Se um manifestante gritar numa rua mas não houver ninguém para o ouvir no YouTube, será que ele gritou mesmo? Na república maioritariamente francófona dos Camarões, em África, o Governo decidiu levar à prática o exercício teórico de George Berkeley (que falava em árvores a cair na floresta) e cortou o acesso à Internet a cerca de 20% da população para silenciar os protestos em duas regiões de língua inglesa – o Sudoeste e o Noroeste – onde os slogans contra a discriminação pelo Estado central se aproximam cada vez mais de uma declaração de independência. Desde 17 de Janeiro, quem quiser enviar um email, fazer uma encomenda online ou protestar no Twitter tem de percorrer dezenas de quilómetros até ao cibercafé mais próximo, do outro lado da fronteira com as regiões francófonas do país.

A medida surge na sequência de protestos iniciados em Novembro de 2016. A divisão linguística, que se repete em tantos países, não seria problemática se os camaronenses de língua inglesa não tivessem a percepção de que os seus concidadãos francófonos têm sido beneficiados política e economicamente desde a independência. As regiões de língua francesa, acusam, têm recebido uma parcela proporcionalmente superior do investimento público. Para agravar a situação – e é isto que gera a actual crise –, professores e magistrados francófonos têm sido destacados em massa para as regiões anglófonas, onde as escolas e os tribunais herdaram sistemas e leis da era colonial britânica, enquanto poucos camaroneses de língua inglesa chegam aos mais elevados patamares da administração central na capital Iaundé, onde a lei e a burocracia são de tradição francesa.

Várias pessoas morreram e centenas foram detidas na repressão aos protestos, mas as notícias chegam cada vez mais a conta-gotas perante a cortina virtual estendida sobre as duas regiões de língua inglesa. Entretanto, o corte da Internet, condenado pelas Nações Unidas, que em 2016 declarou o acesso à rede como um direito humano elementar, e denunciado por personalidades como Edward Snowden, está a isolar um quinto dos camaroneses e a asfixiar os sectores mais inovadores da economia do país. “Isto é o futuro da repressão”, alerta o antigo agente da NSA. “Se não o combatermos ali [nos Camarões], chegará aqui”, adverte.

Ao quarto mês de blackout, um conjunto de startups da chamada Silicon Mountain – um grupo de jovens empresas digitais formadas na cidade anglófona de Buea – montaram entretanto uma espécie de campo de refugiados da Internet para contornar o boicote do Governo. Numa casa alugada na aldeia de Bonako, a primeira do outro lado da fronteira entre o Sudoeste e a província francófona do Litoral, vários empreendedores partilham mesas, cadeiras e modems ao estilo de um espaço de coworking. A rebelião digital é promovida pela primeira incubadora de start-ups do país, a ActivSpaces, e a Njorku, uma empresa de anúncios de emprego que em 2017 a revista Fast Company elegeu como uma das mais inovadoras em África.

Os empreendedores anglófonos evitam assim a longa viagem diária que estavam obrigados a fazer desde Janeiro até à capital económica de Douala – quase 70 quilómetros para cada lado, em estradas em más condições. No entanto, não é uma solução permanente. Empresas como a Skylabase, da área da engenharia de software, estão a pensar trocar o espaço de coworking de Bonoko por um escritório fora do país, olhando para o Ruanda ou a Gâmbia como próximas paragens, indica o Quartz. A confirmar-se o êxodo, os Camarões arriscam perder alguns dos seus quadros mais promissores.

“As pessoas gastaram os últimos sete anos a construir a Silicon Montain pelas próprias mãos, sem qualquer ajuda do Governo. Mas agora o Governo pode destruir tudo com uma única medida. É tão frustante”, disse em Março à CNN Otto Akama, responsável da incubadora ActivSpaces.

O corte da Internet também atinge a economia tradicional. Como noutras nações africanas onde as redes de dependências bancárias não chegam a todo o território, o telemóvel com acesso à Internet tornou-se numa das principais ferramentas para fazer pagamentos e transferências, tanto para pequenos agricultores ou para grandes comerciantes. Com o blackout, acumulam-se as dívidas nos bancos e as mercadorias nos armazéns. As famílias dependentes das remessas dos emigrantes vêem os seus orçamentos evaporarem-se. O problema está a assumir tamanha dimensão que, segundo analistas citados pelo New York Times, começam a ficar em risco as relações até aqui próximas entre a banca camaronesa e o regime do Presidente Paul Biya, no poder há três décadas.

Para além do campo de refugiados virtuais de Bonoko, os camaroneses anglófonos recorrem a outras soluções inventivas para tentar contornar a proibição do Governo. Nas províncias do Sudoeste e do Noroeste, quem depende do WhatsApp para as suas comunicações pessoais e para os seus contactos de negócios escreve uma mensagem offline e paga a um taxista para levar o telemóvel até à fronteira com a zona francófona. Aí, onde houver rede de dados móveis, o motorista envia as mensagens e aguarda pelas respostas. Tornou-se assim comum ver taxistas com sacos cheios de telemóveis a cruzar a região. 

Para os anglófonos, o corte da Internet veio sublinhar precisamente a percepção que conduziu aos protestos iniciados em Novembro de 2016 – que o estado central francófono discrimina esta minoria. De resto, e como lembrava o camaronês Henry Boh ao New York Times, nem no extremo norte do país, onde o extremismo islâmico do Boko Haram representa uma grave ameaça aos cidadãos e às autoridades, existe uma semelhante restrição à liberdade de comunicação dos camaroneses. “O Governo respeita mais o Boko Haram do que nós”, criticava.

Um país, dois sistemas

Como em tantos outros casos que ainda dilaceram o continente africano, o presente conflito nos Camarões é uma herança do colonialismo europeu. A zona tornou-se um protectorado germânico no final do século XIX, num período em que os nacionalismos europeus se projectaram para lá dos limites continentais, no que ficou como a Corrida a África. No rescaldo da I Guerra Mundial, e após a derrota dos alemães, franceses e britânicos repartiram aquele território africano. Aos franceses coube a parte de leão daquele triângulo entre o Golfo da Guiné e o Lago Chade, enquanto os ingleses ficaram com uma faixa de terra na zona que hoje separa os Camarões da vizinha Nigéria, a oeste. Desta forma, uma parte dos futuros Camarões desenvolve-se sob o modelo judicial e educativo inglês, enquanto a outra rege-se por leis e por princípios de administração pública franceses.

Em 1961, um referendo sob os auspícios das Nações Unidas dita a reunificação dos Camarões independentes sob uma solução federal – à excepção de uma pequena parte da zona anglófona, que preferiu juntar-se à Nigéria. Uma década depois, o país torna-se numa república unitária. Os camaroneses passam a estar unidos no papel e no mapa, mas não no dia-a-dia.

Como num casamento com separação de bens, anglófonos e franceses ainda mantêm as respectivas leis. Num país de grande diversidade étnica, o francês é língua franca para cerca de 80% da população, mas um irredutível quinto dos camaroneses continua a estudar, a trabalhar e a conduzir as suas trocas comerciais em inglês.

África offline

O acesso à Internet é cada vez mais um indicador do grau de abertura de um país. Ao mesmo tempo, e no sentido inverso, são cada vez mais os regimes de tendência autoritária que fecham a torneira aos seus cidadãos numa tentativa de controlo da informação e de silenciamento da oposição. Nos últimos dias do Egipto de Mubarak, em 2011, o Cairo cortou a Internet e as redes de telemóvel para tentar conter a revolta que derrubaria o regime.

Na Turquia de Erdogan, repetem-se os bloqueios a redes sociais e a sites como YouTube em momentos críticos para Ancara, como na tentativa de golpe de estado de Julho de 2016. Na China, o Facebook, o Twitter e os serviços da Google estão há vários anos bloqueados, e o recurso a redes privadas (VPN) para tentar contornar a muralha vai passar a ser criminalizado, segundo noticiava a CNN em Janeiro.

Mas é em África que, nos últimos meses, o corte da Internet tem sido empregue mais frequentemente como uma ferramenta de controlo e punição: durante as presidenciais gambianas em Dezembro; no rescaldo das eleições gabonesas em Setembro; na mais recente crise política na República Democrática do Congo ou durante a sangrenta repressão aos protestos da etnia omoro na Etiópia. E quando não se corta a Internet, torna-se o seu uso incomportável. No Zimbabué, por exemplo, os preços dos serviços de dados móveis dispararam recentemente, deixando na prática milhões de pessoas offline.

Entretanto, nos Camarões, ninguém sabe por quanto mais tempo as regiões de língua inglesa permanecerão desconectadas. Segundo o New York Times, que cita fontes diplomáticas em Iaundé, o blackout continuará activo enquanto o regime de Biya aguarda por uma solução tecnológica de fabrico chinês que permitirá filtrar conteúdos considerados impróprios. Em África, o futuro da Internet pode por isso passar por dois cenários igualmente desanimadores: ou o corte, ou a censura.

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