Norte de África – Segurança e Previsibilidade

Enquanto passamos muitos anos com as vistas curtas ofuscadas anualmente com o défice ou o orçamento do momento, a economia nacional resvala para um futuro em que problemas muito maiores se nos colocarão, então já sem tempo para o país reagir e se corrigir.

Tive já oportunidade de aqui sublinhar o erro de a opinião pública, os políticos e os media olharem excessivamente cada ato de terrorismo depois de tudo já ter acontecido. A nossa sociedade é reativa, isto é, reage após os acontecimentos. Mas não é proactiva. Quando se vive demasiadamente a comentar o que sucedeu na véspera nunca se consegue olhar o futuro, antever o que vem ainda longe e, assim, preparar, hoje, estratégias coerentes para o que irá suceder a médio e longo prazo. Logicamente, não possuímos uma bola de cristal para adivinhar o futuro. Contudo, na maioria dos domínios é possível, com algum grau de incontornável falibilidade, compreender e extrapolar as tendências em curso e os padrões predominantes de realidades que nos atingirão no futuro. Isso aplica-se à estratégia empresarial, à competitividade das economias num mercado global, ao impacto das dinâmicas migratórias e, naturalmente, à segurança em geral e ao terrorismo em particular.

Permita-se um exemplo. Acabamos de, mais uma vez, preencher longamente a atenção da sociedade em torno de um ato de brutal terrorismo em Barcelona influenciado a partir do Norte de África. Parece impossível prever este tipo de contextos. Ou será exequível? Obviamente é impossível prever um local e um momento, mas tipologias de futuros atentados são antecipáveis e, por isso, passíveis de contra-estratégias a longo prazo. Noutros casos, não existe praticamente qualquer capacidade de prevenção. Vejamos excertos, em português, do texto de uma minha comunicação na conferência internacional “European Security and Defense” nos dias 4 e 5 de Dezembro de 1995. Isto é, este é um texto escrito há aproximadamente 22 anos. Vejamos.

“A destabilização do Norte de África e o agravamento da sua fragilidade socio-económica poderão induzir uma vaga de emigração maciça para a Europa do Sul, que nestes países europeus poderá ser aproveitada por movimentos neofascistas para expandir a sua base de apoio popular e assim desenvolver dinâmicas de confronto entre grupos sociais e étnicos, de forma primária e irracional, mas preocupante para a própria estabilidade interna europeia.

As taxas de desemprego nos países do Magrebe são elevadíssimas, e a explosão demográfica e a enorme percentagem de jovens que, após a sua formação, não conseguem encontrar emprego nem perspetivas de vida, geram uma explosiva tensão social de frustração.

A pobreza generalizada e a constrangedora ausência de perspetivas nos países do Norte de África e do Magrebe, a melancolia por um passado longínquo de glória civilizacional e ainda o ressentimento ancestral pela arrogância do Ocidente, tornam compreensível o alastramento da adesão popular a movimentos fundamentalistas e mesmo anti-ocidentais, que vêm na Europa do Sul uma espécie de fronteira do Islão não apenas em termos geográficos mas também no plano cultural e civilizacional.

Os radicais islâmicos rejeitam violentamente valores como os direitos humanos, a democracia e a liberdade. É inegável e inevitável o conflito civilizacional que se pode configurar se não forem, em tempo útil, tomadas medidas de fundo de diálogo e de convergência entre o Ocidente e os países moderados e genuinamente islâmicos.

Na Europa, em locais como Londres, Paris, Hamburgo ou Bruxelas, organizações aparentemente cívicas ou culturais são a capa de ações de apoio ao terrorismo na Europa e de organização e de fornecimento de armas às células radicais dentro da Argélia, da Tunísia, de Marrocos, da Líbia e ainda de outros países como a Turquia.

É crucial perceber que existe uma articulação internacional de interesses externos a esses países, para os quais a subjugação do Magrebe ao radicalismo islâmico, anti-ocidental e plataforma do terrorismo internacional, é um objetivo estratégico.

Diversos países, movimentos (e até interesses privados) apoiam financeira e logisticamente o radicalismo islâmico, inclusive na própria Arábia Saudita, a qual entende que o seu apoio pode contribuir para a moderação desses movimentos mas à qual não será estranho o interesse em se proteger internamente contra este tipo de radicalismos subversivos.

É indiscutível que diversos países e forças estão interessados em geral um conflito civilizacional entre o mundo islâmico e os países ocidentais e que a conquista do poder radical na Argélia é um passo importante para esses interesses, não apenas pelo controle do país em si mesmo, mas também para através deste induzir uma queda dos regimes de Marrocos e da Tunísia e, numa segunda fase, do da Líbia, assim alastrando uma mancha geográfica de potencial significativo e ameaçador.

O Egipto e a Arábia Saudita são igualmente objetivos a prazo dessa estratégia, em frentes distintas, mas de objetivos globais convergentes.

Obviamente, a Europa é um alvo central desta estratégia subterrânea de envolvimento e de confrontação.”

De facto, estas considerações são um singelo exemplo de como é possível antever tendências a muito longo prazo mesmo que sem individualizar locais e datas, logicamente. Mas, tal como não sabemos onde irão precisamente ocorrer os fogos florestais nos próximos anos, temos a possibilidade de conceber estratégias inteligentes, mesmo que falíveis, para os evitar, minorar e combater de uma forma sistémica. Na segurança internacional, incluindo o terrorismo, esta contextualização é muito mais exequível do que poderá parecer, em torno de quadros de cenários com variáveis plausibilidades. O mesmo se verifica na urgentíssima reconceptualização estratégica das empresas portuguesas num contexto de mercado transnacional desprotegido e de muitas economias emergentes. Enquanto passamos muitos anos com as vistas curtas ofuscadas anualmente com o défice ou o orçamento do momento, a economia nacional resvala para um futuro em que problemas muito maiores se nos colocarão, então já sem tempo para o país reagir e se corrigir. Os portugueses brincam constantemente com fatores graves e sérios, num clima de risadas e foguetes reveladores de uma nação que há muito perdeu lucidez estratégica, responsabilidade e imaginação. Com a qualidade da nossa política dificilmente se poderia esperar algo diferente. Os nossos filhos e netos pagarão dolorosamente por esta geração superficial e pouco responsável.

A reação de ingénua perplexidade perante a influência subterrânea que o Norte de África exerceu sobre o ataque de Barcelona, globalmente previsível há mais de 20 anos, ilustra a miopia estratégica de um país que, na segurança tal como na economia, na política e em múltiplos sectores, se deslumbra infantilmente com as tricas e as mesquinhas intrigas de cada dia, sem tomar proactivamente, com audácia e imaginação, as rédeas, hoje, do futuro. Por alguma razão esta nação passa anos e décadas sempre a olhar para o curto prazo sem nunca construir, já, o futuro. Assim, nunca irá a lugar nenhum.

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