Não varrer a tirania para debaixo do tapete

Quem preza as suas convicções de esquerda, o respeito pelos direitos humanos, e é solidário com o povo venezuelano, não pode deixar de denunciar Maduro com a mesma firmeza com que denunciaria Orbán ou Kaczinski.

A Assembleia Nacional Constituinte venezuelana já tomou uma das suas primeiras decisões, e exonerou do seu cargo a Procuradora-Geral da República, uma nomeada do tempo de Hugo Chávez que se destacou tanto por investigações contra setores próximos da oposição quanto por denúncias em relação ao poder presidencial de Nicolás Maduro. Foi votada também a abertura de um processo disciplinar contra ela.

A forma da proposta e da decisão, intempestiva, sem tempo para deliberações cuidadas, e votada por unanimidade de braço no ar, foi instrutiva. A Assembleia Nacional Constituinte não começou então pelo trabalho de escrever uma constituição para substituir a anterior, redigida e referendada no tempo de Chávez e agora obsoleta sem que se perceba porquê. Aparentemente, a competência da Assembleia Nacional Constituinte venezuelana, — para além de permitir a Maduro substituir com vantagem um parlamento onde a oposição era maioritária — , é poder usufruir de um poder unitário que lhe permite intervir com à-vontade em todo o lado, incluindo no sistema judiciário. Se o povo é soberano e a Assembleia Nacional Constituinte é o povo, a conclusão procede das premissas: Maduro deu um auto-golpe. E isto é o que nos é dado ver, não pela imprensa mais ou menos opositora, nacional ou estrangeira, mas pelas próprias imagens, discursos e decisões oficiais do regime.

O que diria eu se na Hungria ou na Polónia se estivesse a passar algo de semelhante? Felizmente, não é preciso procurar muito. Foi há apenas duas semanas que escrevi sobre a Polónia dos direitistas seguidores de Kaczinski — e o que disse foi substancialmente o mesmo.

Já há muito tempo que se deveria ter operado no debate público sobre o autoritarismo uma mudança de paradigma, estribada em regras simples e claras. Proponho duas: nunca varrer a tirania para debaixo do tapete e denunciar sempre todas as derivas autoritárias, particularmente quando estas se originam no nosso campo ou família política.

Claro que na Venezuela há uma miríade de variáveis agravantes e atenuantes para as ações do regime, e uma massa infinda de informação impossível de verificar. É por isso que eu condeno o que está a fazer o regime venezuelano baseado no que o próprio regime diz, como faço com o regime húngaro ou polaco. Estes acham que a "ressurreição nacional" dos seus povos historicamente injustiçados tudo justifica, a começar pela demissão dos juízes "comunistas". O regime venezuelano acha o mesmo, mas ao contrário.

Como é evidente, a retórica e as tradições do regime venezuelano são de esquerda, e portanto mais próximas do meu próprio património ideológico. Não o devo nem quero negar, porque isso significaria varrer a tirania para debaixo do tapete. Mas quem preza as suas convicções de esquerda, o respeito pelos direitos humanos, e é solidário com o povo venezuelano, não pode deixar de denunciar Maduro com a mesma firmeza com que denunciaria Orbán ou Kaczinski — e exigir que à direita se faça o mesmo.

Não é apenas por consistência intelectual que estas regras se devem aplicar. É sobretudo porque a consistência na denúncia das derivas autoritárias é uma das poucas coisas que, de fora, podemos fazer para ajudar a conter essas mesmas derivas. Os pretendentes a tiranos são surpreendentemente susceptíveis aos estímulos exteriores. Se o Partido Popular Europeu tivesse isolado Orbán a tempo, ele não teria ido tão longe. O facto de Kaczinski ter poucos aliados exteriores é uma das coisas que o tem feito hesitar. Da mesma forma, se a esquerda mundial for consistente na crítica ao autoritarismo de Maduro, esse será talvez um dos poucos sinais que o faça moderar-se na sua intenção de esticar a corda até levar a Venezuela a partir-se violentamente.

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