A semana em que o Mediterrâneo engoliu mil pessoas

Uma em cada 23 pessoas que tenta a travessia da Líbia para a Itália morre afogada. Na semana passada foram centenas. Caso único, ou apenas o início?

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Quatro migrantes resgatados a caminho da Itália esperam pelo vislumbre da Europa GABRIEL BOUYS/AFP

Não há outra maneira de calcular o número de pessoas afogadas no Mediterrâneo que não seja por um exercício de aproximação. As agências de socorro e protecção de refugiados entrevistam sobreviventes para tentarem aproximar-se do número de pessoas que viajavam numa embarcação naufragada. É uma ferramenta imperfeita que erra quase sempre por defeito: muitas vezes só sobrevivem os que viajavam no exterior do barco e não nos conveses apinhados dos barcos de pesca, onde é comum seguirem centenas de pessoas. Noutros casos não existem sobreviventes ou destroços. Há muito que o Crescente Vermelho da Líbia se ocupa da recolha dos náufragos desconhecidos que dão às praias. Em Fevereiro, recebeu uma doação de mais de mil sacos para cadáveres vinda da Holanda.

A última semana no Mediterrâneo foi uma das mais trágicas de que há registo. Centenas de pessoas morreram afogadas ao largo da costa líbia enquanto tentavam chegar à Itália em pequenos barcos de pesca e botes insufláveis. A agência de protecção de refugiados das Nações Unidas anunciou esta terça-feira que aumentava a sua estimativa de mortos para as 880 pessoas depois de ter ouvido relatos de novos acidentes e naufrágios. Os Médicos Sem Fronteiras fizeram o mesmo, mas arredondaram o número para os 900 afogamentos. É a Organização Internacional das Migrações (OIM) quem dá o relato mais detalhado da semana, em que inclui pequenos naufrágios que parecem não ter chegado às contas das outras organizações: pelo menos mil pessoas morreram entre o dia 23 e 29 de Maio no Canal da Sicília.

Podiam ter sido muitos mais. Mais de 13 mil pessoas que tentaram a travessia nos mesmos dias foram resgatados pela guarda costeira italiana, pela missão europeia de socorro e combate ao tráfico humano na Líbia ou por embarcações de organizações humanitárias. As redes de tráfico mostraram-se especialmente implacáveis nessa semana, possivelmente por estarem a tentar aumentar os lucros antes do mês de Ramadão, como explica um porta-voz da ACNUR, William Spindler. “Os traficantes estão a amontoar pessoas em barcos que quase nem estão preparados para ir ao mar. Em muitos casos nem sequer querem fazer a travessia. O que acontece é que pedem auxílio mal saem da costa e os serviços de socorro têm de os salvar. É uma corrida contra o tempo chegar lá antes que o barco se afunde. E muitas vezes isso não é possível.”

O registo trágico da última semana fez com que o número de pessoas afogadas no Mediterrâneo nos primeiros cinco meses do ano ultrapassasse o registo do último ano. Morreram já 2500 pessoas, mais de 80% na travessia entre a Líbia e a Itália, onde uma em cada 23 pessoas se afoga. No mesmo período do último ano este número rondava as 1855 e era impulsionado pelo naufrágio trágico de uma embarcação de pesca em que devem ter morrido mais de 700 pessoas. Mas isto não é prova de que há mais pessoas a tentarem navegar para a Europa a partir da Líbia, ou de que o encerramento das fronteiras a Norte da Grécia e o acordo polémico para a devolução de pessoas à Turquia esteja a desviar o fluxo de requerentes de asilo e imigrantes para a Líbia. Mesmo contando as 13 mil pessoas resgatadas e enviadas para a Itália nos últimos dias.

Vigilância imperfeita

Este ano chegaram à Itália 47,6 mil pessoas, pouco mais do que as 47,4 mil que o fizeram no mesmo período de 2015. E quem o tenta continuam a ser predominantemente africanos, sobretudo vindos da Nigéria e da Gâmbia, embora entre eles viagem também muitos somalis e eritreus, que em muitos casos conseguem estatuto de refugiado na Europa. Como Stefanos, um jovem que fugiu do regime repressivo da Eritreia e sobreviveu ao naufrágio mais mortífero da última semana, em que cerca de 550 pessoas se afogaram. O seu barco não tinha motor e seguia atrelado a uma embarcação de traficantes, que cortaram a corda que os unia. “Estavam muitas mulheres e rapazes no convés. Estávamos a meter água, mas tínhamos uma bomba que nos ajudava a tirá-la. Quando ela ficou sem combustível, pedimos mais ao capitão do primeiro barco. Ele disse que não. Não havia nada que pudéssemos fazer: a água entrava por todos os lados e começámos a afundar lentamente.”

O director da OIM para o Mediterrâneo explica que é mais provável que o pico de viagens desde a Líbia na última semana se deva mais à melhoria do tempo do que a uma nova vaga de refugiados. Para além disso, os traficantes usaram mais barcos de pesca do que o habitual, que levam por vezes centenas de pessoas numa só viagem, ao contrário dos botes insufláveis. Mas põe-se também a possibilidade de semanas como esta se voltem a repetir em breve. O Verão aproxima-se e a Líbia está ainda longe de um Governo unânime que consiga reorganizar a sua guarda costeira, que é praticamente inexistente; desmantelar as redes de tráfico humano que prosperaram com o vazio de poder e dar condições de vida e trabalho às dezenas de milhares de pessoas que viajam para a Líbia fugindo da pobreza e do conflito em outras partes de África. E a Europol diz que 800 mil pessoas esperam na Líbia pela sua vez de chegar à Itália. 

Na passada quarta-feira, no mesmo dia em que a OIM publicava o registo de um ano aparentemente menos mortífero no Mediterrâneo, os ministros europeus dos Negócios Estrangeiros anunciavam que iriam prolongar a missão Sophia durante mais um ano e treinariam agentes líbios para travarem as travessias na raiz. Mas a missão europeia ao largo da Líbia não tem sequer permissão para operar nas águas nacionais, onde poderia detectar mais rapidamente redes de tráfico e os barcos a caminho de Itália. E organizações humanitárias alertam que isso significaria enviar pessoas para o disfuncional e abusivo sistema prisional da Líbia, onde se estima que estejam detidas mais de 3000 pessoas por tentarem chegar à Itália. “Teria feito qualquer coisa para não ir para a prisão neste sítio”, diz Mobo, da Nigéria, detido na Líbia enquanto tentava ir para a Itália. “Preferia morrer a estar aqui.”

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