Merkel na Casa Branca para testar uma relação difícil

Se a neve permitir, Angela Merkel tem nesta sexta-feira um encontro com Trump na Casa Branca que a Europa acompanha com o máximo interesse. Não se espera que haja química, apenas algum pragmatismo.

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Se a Casa Branca estudou devidamente o comportamento da chanceler, já sabe que ela é capaz de dizer o que pensa Reuters

Seria, porventura, impossível encontrar duas personalidades políticas tão antagónicas. A chanceler alemã, Angela Merkel é racional, paciente, meticulosa. Donald Trump dificilmente consegue funcionar mais devagar do que um tweet, a sua linguagem é populista, a sua visão do mundo está (quase) nos antípodas dos seus antecessores. A chanceler evitou reagir a quente à sucessão de ataques que o Presidente americano lhe dirigiu, durante e depois da campanha eleitoral. A sua primeira reacção à eleição do novo Presidente foi certeira: Berlim está disponível para desenvolver uma boa relação com Washington, que assente nos valores que os dois lados do Atlântico partilham. Em contrapartida, Trump pôs em causa os fundamentos aliança transatlântica e da própria relação entre a Alemanha e os Estados Unidos, prosseguida por todos os presidentes desde o fim da II Guerra. Acusou a Alemanha de dominar a Europa para proveito próprio. Classificou a política de Merkel para os refugiados como um “erro catastrófico”. O ambiente desanuviou um pouco quando o chefe do Pentágono foi visitar a NATO, no mês passado, e o vice-Presidente Mike Pence foi a Munique (à conferência anual sobre segurança e defesa) e a Bruxelas tranquilizar os europeus sobre o empenho da Administração na União Europeia e na NATO. A sua mensagem será clara, escreve o Politico citando fontes da chancelaria: “precisamos um do outro”.

Evitar surpresas

Merkel, dizem os seus assessores, preparou-se minuciosamente para encontro desta sexta-feira com Trump. Não quer ser surpreendida. Vai insistir nas relações económicas e faz-se acompanhar pelos chefes de grandes empresas alemães com investimentos na América, como é o caso da BMW (com uma gigantesca fábrica na Carolina do Sul) ou da Siemens (que emprega 50 mil americanos, num total de 750 mil postos de trabalho criados pelo investimento alemão). Os EUA são o maior parceiro comercial da Alemanha, que beneficia de um excedente de mais de 50 mil milhões de euros. Washington faz a Berlim uma crítica semelhante a vários países europeus, insistindo em que o maior exportador mundial tem de aumentar o consumo interno e o investimento, de modo a criar condições de maior equilíbrio. A diferença está no estilo, no tamanho e na receita. A maior economia do mundo tem mais força e outras armas, uma das quais a ameaça de repor taxas de importação. Ontem, o ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schauble, advertiu, que “nenhum país pode impor [um sistema de taxa alfandegárias] unilateralmente”, acrescentando que também será “bastante improvável” que o consiga a nível multilateral. Peter Navarro, conselheiro económico de Trump, não tem perdido uma oportunidade para apontar o dedo à Alemanha, acusando-a de beneficiar de um euro mais fraco e, portanto, mais amigo das exportações alemãs. No Financial Times, Gillian Tett aconselhava Merkel a dizer a Trump que, se ele quer mais indústrias de bens transaccionáveis nos Estados Unidos, então ela tinha muitos conselhos a dar-lhe. O proteccionismo de Trump é uma das maiores preocupações europeias.

A chanceler e a Rússia

Em Washington, a imprevisibilidade continua a marcar a Casa Branca, mas há sinais de interesse em retomar o diálogo com o país mais poderoso da Europa. O Presidente declarou-se “maravilhado” com a decisão da chanceler de aumentar os gastos com a defesa, correspondendo aos compromissos assumidos com a NATO e ao aviso da nova Administração (e das anteriores, mesmo que noutra linguagem) de que não está disposta a pagar o que paga pela segurança europeia. Fontes da Casa Branca disseram também que o Presidente está muito interessado em ouvir a opinião de Merkel sobre a Rússia e sobre Putin. Para alguns analistas americanos, pode ser possível algum terreno comum em matéria de defesa. Merkel está disposta cumprir as exigências da NATO, aumentando os gastos com a defesa, desde que o Presidente não caia na tentação de fazer qualquer acordo com Putin por cima da cabeça dos  europeus.

Interesse mútuo

Estrategicamente, não é fácil para Berlim perder um dos pilares da sua política externa desde a fundação da RFA: a relação com os EUA. Durante e depois da unificação, a Alemanha preservou uma relação privilegiada com os sucessivos presidentes, desde Bush (pai) até Obama, incluindo George W., quando Merkel sucedeu a Gerhart Schroeder. Charles Kupchan, que foi conselheiro de Obama para a Europa, disse à Reuters que Merkel e Trump “têm um forte interesse político e estratégico em aprender a lidar um com o outro”. Falta acrescentar que, se a Casa Branca também estudou devidamente o comportamento da chanceler, já sabe que ela é capaz de dizer o que pensa, mesmo que esteja ao lado do alvo das suas críticas. Sem sequer alterar o tom de voz.

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