Memórias de Azancot de Menezes contra “novos fanatismos” em Angola

Médico e fundador do MPLA, Hugo Azancot de Menezes (1928-2000) vê finalmente as suas memórias editadas em livro, que será lançado esta terça-feira na Biblioteca Nacional. Uma viagem pela história da resistência angolana e pelo interior do MPLA.

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Hugo Azancot de Menezes em Angola DR / ÁLBUM DE FAMÍLIA

Os estudantes angolanos em Portugal, na década de 1950, estavam alheios à tempestade prestes a rebentar em Angola. Longe do forte militantismo político que ali cimentava os movimentos de libertação e também da guerra que se avizinhava. Esta é uma das conclusões do livro intitulado Percursos da Luta de Libertação Nacional. Viagem ao Interior do MPLA. Memórias Pessoais, de Hugo Azancot de Menezes, médico já falecido e fundador do MPLA. O livro, com o selo da Nova Vega Editora, tem organização, fixação e revisão do texto, preâmbulo, notas e comentários do historiador angolano Carlos Pacheco, que, no preâmbulo, escreve: “Azancot entendia ser necessário, pelos caminhos da memória, responder com a verdade da sua experiência militante, sem concessões, por ser o melhor contributo a prestar às futuras consciências colectivas, ajudando-as a defender-se de novas utopias fundamentalistas e de novos fanatismos.” O lançamento ocorrerá esta terça-feira na Biblioteca Nacional, em Lisboa, pelas 18h.

Eis dois excertos, em pré-publicação:

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A capa do livro de Azancot de Menezes

Estudantes alheios à tempestade prestes a rebentar em Angola

Dos estudantes angolanos que partiam para Portugal nas décadas de 1940-50, a esmagadora maioria mal tinha saído da adolescência. Pela idade, e pela sua origem de classe, não tinham a menor noção das realidades profundas de Angola. Mesmo os que partiam para lá mais velhos, raros levavam na sua bagagem alguma experiência de militantismo político e foi nesta condição de alheamento e de desconhecimento do seu próprio país que se mantiveram em terras lusas. Muitos viriam a encontrar-se na Casa dos Estudantes do Império.

Lúcio Lara, já então na Europa, não desfrutava de melhor posição quando comparado com os demais compatriotas ali residentes, tanto quanto se pode depreender de alguns dos seus escritos. Colhe-se a impressão que ele pretendeu promover o grupo dos “marítimos”, atribuindo-lhes um papel fulcral na luta de libertação que eles, ao certo, nunca desempenharam. Menos ainda como veículos de informação entre Lisboa e Luanda, e vice-versa. As informações mais sensíveis em nenhum momento passaram pelos “Marítimos”, nem eles eram portadores de mensagens, directrizes ou palavras de ordem, muito simplesmente porque não as tinham ou não as recebiam. As notícias e outras comunicações não passavam pela Europa e tão-pouco a luta do povo angolano viajava nos paquetes coloniais. Não fazia escala por Portugal e não frequentava as suas Universidades.

Que importância o Portugal metropolitano e os estudantes angolanos ali residentes podiam ter nessa época para a luta que fermentava e se organizava nos subúrbios de Luanda e no coração doutros vilarejos, especialmente ao redor das fazendas agrícolas do norte de Angola? Que importância esses estudantes tinham nessa colossal mobilização popular que se estendia de Angola até Léopoldville? Como poderia o circunscrito e bem visível Clube Marítimo Africano [criado em 1954] cumprir tão ”magno protagonismo”, não fosse uma certa complacência da parte da tentacular e omnipresente polícia política de Estado? Como entender que no decurso de vários anos os seus dirigentes, entre os quais se incluía Humberto Machado e o próprio Lúcio Lara, não tivessem sido presos quando as suas aparentes ligações ao Partido Comunista Português (PCP) eram do domínio público? Convém esclarecer que as detenções de Agostinho Neto, enquanto estudante em Portugal [1950, 1951 e 1955], não resultaram de motivos relacionados com o nacionalismo africano ou por ligação a organizações políticas angolanas, e sim por conexão com o PCP. Além do mais, quantos desses “marítimos” foram metidos na prisão por actividades políticas subversivas, sabendo-se que trabalhavam para empresas de vital importância estratégica para o colonialismo português, como eram então as duas grandes companhias de navegação, a Nacional e a Colonial? Quais e quantos documentos políticos trouxeram eles clandestinamente de Angola e quantos para lá levaram? A que organizações ou partidos políticos prestaram serviços se até 1959 se ignorava em Portugal a existência de actividades políticas clandestinas em Luanda e noutras cidades? O que fizeram de verdade durante tantos anos as quatro dezenas de membros [ao certo 55] que compunham a massa associativa do Clube Marítimo? Quantos “marítimos” abandonaram o “mar” para se envolverem, de facto, com a luta armada de libertação nacional? A resposta é muito clara: nem um só.

Era grande o distanciamento e a ignorância sócio-política dos estudantes angolanos residentes em Portugal no concernente às questões mais prementes da sua terra natal. Afora algumas excepções, a Metrópole, a bem dizer, só albergava nesse tempo gente deste tipo. Jovens que seguiam um curso. O surgimento em Portugal de uma importante classe laboral angolana, à semelhança de outros países africanos, tirante o caso de Cabo Verde, é um fenómeno relativamente recente.

A informação portuguesa era orientada, controlada e veiculada pelas tenazes do regime político, tanto em Portugal como em Angola. Apenas a imprensa clandestina, ligada ao PCP, escapava aos ferros de tal controlo. Nós, estudantes de então, conhecíamos as publicações desse partido, o Avante e O Militante. A sua difusão e circulação, no entanto, tinham um carácter limitado e extremamente condicionado, além de que o espaço dedicado aos nossos problemas era, por assim dizer, quase nulo. Nós, estudantes africanos, sequer representávamos o alvo principal das notícias. As emissoras estrangeiras (mormente a BBC e a Rádio Moscovo), essas, sim, passavam por ser para nós, ao fim e ao cabo, as únicas fontes regulares de informação credível.

Deste modo, para encontrarem respostas a alguns dos seus anseios, os estudantes procuravam aglutinar-se em “ilhas”. Uma das pontes possíveis era o PCP, única força anticolonialista então organizada e conhecida em Portugal. Refiro-me, em particular, ao núcleo juvenil conotado com o Partido. O relacionamento do Movimento de Unidade Democrática (MUD Juvenil) com os elementos da comunidade africana era excelente; havia, de facto, uma grande abertura e simpatia com os membros dessa agremiação, não raro extensível aos seus familiares.

A Casa dos Estudantes do Império, fortemente vigiada e infiltrada pela PIDE [ex-PVDE desde 1945], não estava nem um mínimo preparada e sequer dispunha de margem de manobra para responder às preocupações políticas de muitos dos seus afiliados; tanto mais que a sua própria natureza e composição não lhe dava liberdade para se ocupar de outras tarefas que não fossem de carácter estritamente académico. De certo modo, a Casa assumia-se com um perfil elitista. Tenha-se em conta a origem etno-social, urbana e regional da grande maioria dos seus membros que, no caso angolano, dificilmente se reviam no espelho daquela Angola, cujos problemas fundamentais passavam, antes de tudo, pelas áreas suburbanas e rurais. E isto porquê? Porque uma minoria de africanos conseguia sobreviver nas franjas do sistema colonial e estar ao abrigo (relativo e temporário) da agressão física directa e brutal que em Angola vitimava os autóctones. Nem sempre se tinha a noção de que nenhum colonizado – fosse quem fosse – podia subtrair-se à agressão psicológica permanente e directa própria do sistema e a este indissoluvelmente ligado: o insulto colonial a todos dirigido. Ainda assim, este insulto era aparentemente ignorado por alguns. Na Metrópole, por exemplo, exibia-se com outras vestes, menos cruento e menos nu, mais engravatado.

A Casa dos Estudantes do Império e as suas contradições internas

A adaptação dos africanos ao meio social metropolitano, como se poderá imaginar, ia-se tornando cada vez menos possível à medida que se afirmava a sua tomada de consciência de “homem colonizado”; e à medida também que se agudizavam as contradições do sistema colonial em consequência do aumento da repressão, do abandono do colonialismo clássico pela França, Holanda e Inglaterra, e ainda por efeito da luta armada de libertação do povo argelino, bem como pela luta anticolonialista e anti-imperialista em todo o mundo. Todos estes factores juntos, concorreram para que se avolumassem e adensassem em muitos africanos sentimentos nacionalistas, cuja ressonância até então não ia além de segmentos muito restritos da sociedade portuguesa. Entretanto, o regime de Salazar, justificando-se com a defesa do “património histórico inalienável” e do “Portugal do Ultramar” não dava mostras de querer abrandar nas suas posições irredutíveis e nas campanhas de repressão contra os opositores.

No ciclo temporal que mediou entre 1952 e 1956 viveu-se na Casa dos Estudantes do Império um clima de acentuada discussão política. O irradiante dinamismo de Amílcar Cabral, de espírito patriótico aberto e directo, aliado à profundidade dos seus conhecimentos, impunham a sua liderança nas discussões e nos debates que, por essa época, se generalizavam na cantina da CEI, mais concretamente à hora das refeições em que se juntava um maior número de estudantes de todas as colónias. A PIDE, sem que muitas vezes nos apercebêssemos, dava linha ao peixe...

Rememoro a figura de Rui de Sequeira Nazaré, estudante “crónico” de Medicina, natural de Goa, de estatura baixa e calvo, com uma bela e aveludada voz de contra-baixo, tão paternal e afável quanto radical na defesa das suas convicções comunistas. Um belo dia a PIDE prendeu-o. Submetido aos habituais métodos de interrogatório e tortura, fraquejou. E falou “tudo”. Alguns dos seus camaradas mais próximos, além de enclausurados, amargaram penosos interrogatórios e buscas domiciliárias. Era vê-lo mais tarde. Aquele mesmo Nazaré, sempre vertical, alegre, iluminado, combativo e generoso, sempre militante e sempre na vanguarda [até na poesia], de um dia para o outro transfigurou-se. Murchou, olhava para o chão, atravessava a rua a passo estugado e fugia de nós, de todos e de si próprio.

David Bernardino, Portela Santos e outros tantos, também de ascendência portuguesa, simbolizavam uma geração de jovens que se faziam notar pelas suas posições corajosas, pela sua actividade e dinamismo e pelo seu militantismo e, quase todos, pelas suas ligações ao MUD Juvenil [formado em 1946] e ao Partido Comunista Português. Nessa ala progressista entravam ainda Antero de Abreu, Carlos Ervedosa, Ceita Machado e Pequito.

Outra figura inesquecível desse tempo, enquanto activo dirigente estudantil, foi Vasco Cabral [1926-2005]. Conhecemo-nos no Liceu Camões, em Lisboa. Era natural da Guiné-Bissau, filho de um médico nativo falecido ainda novo. Viveu em Lisboa desde tenra idade com a mãe e o irmão Luís e licenciou-se em Ciências Económicas e Financeiras, tendo por colega São José Lopes, que viria a ser o subdirector da PIDE em Angola. Aliás, conta-se que, cada vez que Cabral se cruzava com aquele colega, escarrava ostensivamente para o lado. São José era já então afamado pelo seu papel de informador da polícia. Não se pode dizer que Vasco Cabral fosse propriamente um líder das hostes africanas, os seus principais apoiantes e simpatizantes agrupavam-se do lado português, devido ao facto sobretudo de ele ser uma figura de proa do MUD Juvenil. As suas idas à CEI eram pouco habituais. Arlindo do Espírito Santo certa vez com ar conspirativo e incrédulo segredou-me: – “Sabes quem ouvi falar na Rádio Moscovo?”. E baixinho, para que ninguém o escutasse, relatou: – “O Vasco Cabral. Atacou Salazar e o regime fascista português e terminou o discurso a dar vivas à paz. No final identificou-se: ‘Daqui fala Vasco Cabral’”. Mal me refiz do impacto desta notícia, porque logo se apoderou de mim a certeza de que nunca mais voltaria a ver o meu amigo. Eu conhecia a força e a profundidade das suas convicções político-ideológicas e o seu radicalismo. Transcorria o ano de 1953.

Pouco tempo depois encontrava-me na Gare Marítima de Alcântara, onde naquela época acostavam os paquetes das linhas de África. Eu estava ali a aguardar a chegada de familiares vindos de Angola. Assim que o navio atracou ao cais, ouvi da ponte alguém que gritava: – “Viva a paz”. Inacreditável. Era Vasco Cabral de regresso a Lisboa. Foi um dos primeiros “passageiros” a descer. Ao ver-me no cais por entre a multidão (predominantemente portuguesa), dirigiu-se a mim, proferindo em voz alta: – “Viva a paz. Vou preso, Hugo, sabes porquê? Porque lutei pela paz. E a todos os que me ouvem aqui, lutem também pela paz”. Só então reparei que ele não estava só, acompanhavam-no alguns indivíduos, agentes da PIDE, com certeza. Compreendi que, ao fazer-se notar, Cabral comprometia a polícia secreta, e não só: ficávamos todos informados da sua prisão. Não seria fácil fazê-lo desaparecer. Ele regressava a Portugal com passagem por Londres e Funchal, vinha de um Congresso da Paz em Moscovo. Detectado e seguido, acabou por ser detido na Madeira [penou uma prisão de cinco anos]. Evadiu-se de Portugal em 1962 e aderiu ao PAIGC sob a liderança de Amílcar Cabral, a quem não atavam nenhuns laços de parentesco.

A “luta pela paz” nesse tempo era catalogada como um atentado contra o chamado “Mundo Livre” (de que o Portugal fascista e colonialista passava por ser um dos seus maiores defensores). Os países da esfera ocidental [subentenda-se, do bloco capitalista mundial] tinham acabado de criar a NATO, estavam equipados com armas atómicas e defendiam posições ameaçadoras sobre o bloco dos Estados comunistas que necessitavam de paz para a consolidação das suas posições e conquistas. A luta pela paz, além de ser um imperativo, representava, por isso mesmo, a grande palavra de ordem do mundo socialista.

A partir de certa altura a influência dos estudantes africanos, em particular dos angolanos progressistas – directa ou indirectamente ligados ao Partido Comunista Português –, começou a fazer-se sentir de forma clara no interior da CEI, até então dominada pelos filhos de portugueses naturais de Angola e por moçambicanos, senhores do país. Foi então que se deu a eleição de uma direcção distinta das anteriores, na qual se incluíam alguns não-europeus, entre os quais o meu irmão Óscar Jacob. Para presidente, elegeu-se Ataíde Lobo, de origem goesa. Com o tempo, esta influência tendeu a ganhar corpo e com ela sobreveio a reacção: os sócios de costela portuguesa, sobretudo os nascidos em Moçambique, sentindo-se superiores aos demais, debandaram e foram criar a “sua” Casa de Moçambique. Dizia-se que eles não estavam dispostos a frequentar as “batucadas da Casa”. A este respeito, recordo as palavras de uma colega do curso de Medicina, portuguesa, natural de Moçambique, que me declarou ter Lourenço Marques [a capital] dez mil habitantes. Imediatamente a corrigi e avancei com o número correcto: trezentas a quatrocentas mil pessoas. «Mas esses são pretos», replicou ela escandalizada. Assistiu a esta conversa o nosso colega de curso João Carneiro de Moura Pulido Valente [1925-2003]. Olhámo-nos mutuamente, ele pasmou com o que ouvira, as ideias progressistas de João Pulido eram conhecidas. Por diversas vezes a PIDE privou-o da sua liberdade por actividades hostis ao regime de Salazar.

A discriminação racial, os recalcamentos e as arbitrariedades, mais as dificuldades do dia-a-dia de cada estudante africano, cujas mensalidades, além de magras, nunca eram recebidas a tempo e, quando o eram, nem ao menos permitiam à grande maioria ultrapassar o portal da abstinência, tudo isto, numa palavra, consubstanciava o caldo de miséria mal escondida em que viviam os nossos compatriotas autóctones, cujo número perfazia umas dezenas. Por mais chocante que pareça, esta realidade de indigência contrastava de forma gritante com o elevado nível de vida dos estudantes de cepa lusitana, especialmente os nascidos em Angola. Autóctones de Moçambique eram raros na época, a maioria provinha de famílias portuguesas, sendo os estudantes de origem indiana os que pontificavam pelo seu maior número.

Em Londres e Paris vivi e convivi no final da década de 1950 com estudantes oriundos das colónias africanas de Inglaterra e França. Era chocante cotejar a nossa mediocridade com as facilidades desfrutadas por milhares de estudantes e quadros africanos procedentes dos domínios britânicos e franceses de além-mar. Já então se achava em curso da parte dos dirigentes dos Estados africanos (apesar de muitos ainda estarem submetidos ao domínio colonial), e da parte também dos governos de Paris e Londres, uma firme política de formação e africanização de quadros. Em Inglaterra, por exemplo, por volta de 1959 havia vinte mil estudantes e quadros académicos africanos como bolseiros dos respectivos países. A título de curiosidade, cito algumas das entidades que financiavam os estudos dos seus talentos no exterior: West African Students Union (WASU), Tanganyka Students Association, Ghana Union of Great Britain and Ireland, Nigeria Union of Great Britain and Ireland, East and Sierra Lione Students Association e Nyasaland Students Association.

Tais estudantes realmente não tinham com que se preocupar. Nem com as despesas de alimentação, nem com as despesas de alojamento. O pagamento dos estudos era inteiramente suportado pelos cofres públicos dos Estados de origem.

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