Macron, Le Pen e a esquerda portuguesa

Essa Europa melhor, mais integrada e solidária a que aspiramos, para além de qualquer miragem isolacionista e suicidária, é incompatível com o fanatismo anti-europeísta de comunistas e bloquistas.

Portugal tornou-se um "case study" da política europeia – e até mundial – devido à originalidade da sua fórmula governativa, mas agora há novos motivos para reflexão sobre o tema, na sequência da primeira volta das presidenciais francesas.

Enquanto em França se assistiu a uma mudança inédita da paisagem política, em que socialistas e gaullistas ficaram de fora na corrida ao Eliseu, o panorama em Portugal prometia ser bem divergente – e singular. Aqui, os socialistas continuam a governar com o apoio parlamentar de comunistas e bloquistas e a bênção inesperada de um Presidente originário do centro-direita. Apesar dos equilíbrios instáveis dessa fórmula e das contradições ideológicas flagrantes entre o PS e os partidos à sua esquerda – designadamente no que se refere à União Europeia e ao euro –, instalou-se a convicção de que a actual legislatura poderia mesmo durar até ao fim, contrariando a maioria dos vaticínios iniciais. À consumada habilidade política e crescente popularidade do primeiro-ministro juntaram-se dois factores complementares, confirmados pelas sondagens que dão o PS muito perto da maioria absoluta: por um lado, comunistas e bloquistas receiam pagar caro a aventura de precipitar eleições antecipadas; por outro, a direita continua refém da sua herança governativa dos tempos da austeridade e da "troika", sem ideias ou propostas que ultrapassem o ressentimento e o azedume.

Nada mais diferente, dir-se-ia, do banho-maria da política portuguesa – pelo menos enquanto António Costa conseguir navegar à vista entre os obstáculos externos e internos – do que o terramoto francês, em que um quase óvni político, equidistante da esquerda e da direita clássicas, ganhou a primeira volta das presidenciais, tendo como rival na segunda volta a representante da extrema-direita nacionalista e xenófoba.

Ora, este terramoto acabou por abalar a paz aparente da nossa política doméstica, trazendo à superfície – pelo menos para quem ainda pensasse poder iludir a realidade – as divergências insanáveis da esquerda portuguesa face à cada vez mais crucial questão europeia. Seguindo na esteira de Mélenchon que, obnubilado pelo seu notável resultado na primeira volta das presidenciais francesas, recusou assumir pessoalmente uma orientação de voto para a segunda volta, os aliados do Governo de António Costa insistiram em colocar no mesmo plano o europeísta Macron e a xenófoba Le Pen como se ambos fossem a mesma coisa e representassem os mesmos valores civilizacionais.

Nem o espírito anti-fascista que comunistas e bloquistas reivindicam com tanto fervor foi suficiente para ajudá-los a não confundir o inconfundível. As máscaras caíram. E o álibi de Macron ter sido banqueiro e representar a alta-finança é demasiado cómodo, frágil e sobretudo hipócrita quando se está perante uma escolha política tão radical. De facto, a verdadeira questão que o velho PCP (historicamente refém da sua submissão ao comunismo soviético, ao ponto de a transferir para Putin, apoiante convicto, aliás como Trump, de Le Pen) ou o mais juvenil mas igualmente sectário Bloco não conseguem disfarçar é o seu anti-europeísmo primário, tão grosseiro e vesgo que não se importam de fazer dele contrabando com o seu tão incensado anti-fascismo.

Essa Europa melhor, mais integrada e solidária a que aspiramos, para além de qualquer miragem isolacionista e suicidária, é incompatível com o fanatismo anti-europeísta de comunistas e bloquistas. E será por aí que, quer se queira, quer não, chegará o momento da verdade entre um PS europeísta e os seus aliados de circunstância, prometidos aliás a um ocaso como aquele a que as presidenciais francesas conduziram uma esquerda e uma direita decrépitas. Não, Le Pen e Macron não são, de todo, a mesma coisa.

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