Macron é um “Presidente odiado”. Por quem?

Para Mélenchon, o inimigo nunca foi Marine Le Pen, mas Emmanuel Macron.

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1. Amanhã é o dia da transmissão dos poderes a Emmanuel Macron. A sua extraordinária eleição suscitou elevadíssimas expectativas, na França e no mundo. É natural a celebração. Mas a última coisa que os entusiastas devem fazer é anunciar que Emmanuel Macron vai “salvar a França e a Europa”. Podem, sim, pensar que a sua política é a mais adequada para esse fim e, por isso, apostar no “optimismo de combate” de Macron. Mas este pressupõe um elevado “realismo”, sem o qual a sua campanha não teria passado de um devaneio. Ele foi o primeiro político da V República a alcançar a presidência sem o apoio, ou com a oposição, do Partido Socialista e d’Os Republicanos (LR).

Cumprida a primeira etapa da sua estratégia, começa a segunda: como reformar a França e como ajudar a redesenhar a Europa? O “realismo” exige seriar os obstáculos. As reformas económicas encontrarão uma poderosa oposição. As questões europeias dependem muito do que se passar em Berlim. E, para poder pôr em prática o seu programa, o novo Presidente terá de obter uma maioria nas legislativas de Junho ou, a seguir a elas, negociar à esquerda e à direita uma “maioria presidencial”.

2. Antes de falar de reformas, lembremos uma coisa simples. Não basta ao Presidente ter legitimidade eleitoral. Se não conseguir uma maioria parlamentar nas legislativas de Junho, ou logo a seguir a elas, não disporá dos meios políticos necessários para aplicar o seu programa.

Há uma tradição francesa de dar ao novo Presidente uma maioria para que possa governar. As derrotas em legislativas, levando ao cenário da coabitação, sempre aconteceram nas segundas eleições após as presidenciais. Nesta tradição seria normal que o novo “partido presidencial” conquistasse uma maioria absoluta. Mas estas legislativas, à imagem das presidenciais, poderão ser também extraordinárias.

O sistema partidário está em decomposição. Observa o jornalista Pierre Briançon: “Em muitos aspectos, não foi para ele um trabalho árduo destruir os velhos partidos, eles fizeram um belo trabalho por si mesmos.” As legislativas deverão acelerar a decomposição e, ao mesmo tempo, marcar um possível início da recomposição partidária. Haverá cinco siglas principais na disputa dos 577 lugares da Assembleia Nacional: a República em Marcha (REM), de Macron, o PS e o LR, e os dois extremos, a França Insubmissa (FI, de Jean-Luc Mélenchon) e a Frente Nacional (FN, de Marine Le Pen).

Se olharmos a primeira volta das presidenciais, teremos de admitir que em numerosos círculos possam passar à segunda volta três ou quatro candidatos com votações próximas. Como sempre, serão decisivos os acordos de desistência, para beneficiar um aliado ou, sobretudo, para eliminar um adversário — foi o mecanismo que bloqueou os candidatos da FN. Mas, este ano, o mapa partidário é mais complicado e imprevisível do que nunca. Por exemplo: os “insubmissos” parecem dar prioridade a eliminar os “macronistas”.

A taxa de abstenção terá uma influência determinante. Todas as previsões são falíveis e Macron não tem uma maioria assegurada. Se a não tiver, será obrigado a negociar casuisticamente acordos à direita ou à esquerda. E, se o REM fracassar, estará perante o cenário da impotência: a coabitação.

3. As reformas económicas vão ser as mais difíceis. A cultura dos “direitos adquiridos” é dominante em França. A oposição às reformas vai ser muito forte e está a ser preparada desde já. Para a “esquerda da esquerda”, para os sindicatos de contestação e para numerosos grupos de pressão, “é uma questão de vida ou morte”, previne o economista Charles Wyplosz.

Macron será rapidamente confrontado com a “cólera” dos perdedores da gobalização e do progresso tecnológico (ver Pedro Magalhães, “Ganhadores e perdedores”, PÚBLICO de 7 de Maio). E reformas como a do mercado do trabalho vão começar por fazer “novos perdedores” e só a prazo os seus resultados sobre o desemprego e a produtividade se poderão sentir. A linha de Macron é próxima da “lógica nórdica”: proteger as pessoas e não os postos de trabalho. Terá de imaginar as formas de proteger os novos “perdedores” e de fazer um grande esforço para convencer a opinião pública.

De momento, o principal eixo do confronto político não parece ser o de esquerda-direita. Enquanto a FN se recompõe da derrota presidencial, está a emergir o confronto Macron-Mélenchon. Este decidiu assumir a liderança da oposição, que disputa ao LR e a Sarkozy. Tem um duplo objectivo: impedir uma maioria do REM e liquidar o PS: “Eu não quero enfraquecer o PS, quero substituí-lo.”

Resume Wyplosz: “Para Mélenchon, (...) o inimigo nunca foi a FN, mas Macron. Com efeito, a novidade de Macron toca dois domínios que estão no coração do programa da esquerda: a imperiosa necessidade de reformar a economia e a relação com a Europa.”

4. Dois dias antes da segunda volta, o jornalista e realizador François Ruffin, candidato a deputado pela FI de Mélenchon, publicou no Le Monde uma tribuna intitulada “Carta aberta a um Presidente já odiado...”. O “odiado” é Macron. Ruffin relata o que ouviu numa acção de rua enquanto distribuía propaganda: “O senhor é odiado, é odiado, é odiado.” Porquê? “É odiado pelos que vêem em si, com razão, a elite arrogante. (...) A oligarquia apoia-o, perfeito, e as classes superiores seguem. (...) Mas, em baixo, nas classes populares, é a carnificina.”

Ruffin visa os cortes de despesa e as reformas das leis do trabalho, contestando a legitimidade eleitoral de Macron. Não foi eleito na primeira volta “por adesão ao seu programa, mas pelo voto útil”. E, na segunda volta, “milhões de franceses não se deslocarão às assembleias de voto para escolher entre a peste e a cólera”.

O texto de Ruffin é útil por duas razões. Primeiro, antecipa uma declaração de guerra: “O senhor traz em si a guerra social como a nuvem traz a tempestade. A bom entendedor...” Em segundo lugar, anuncia o argumento: Macron não é legítimo. Terá legitimidade para gerir os negócios correntes, não para reformar. Terá tido uma vitória por defeito.

Não é o lugar de discutir falácias. O que importa é perceber as tormentas que ameaçam abalar a França. O problema de Macron não é a legitimidade. Tem a mesma legitimidade democrática dos antecessores. O que ainda lhe falta é o teste das legislativas, que determinarão a sua margem de manobra para afrontar as reformas de fundo e mudar a França.

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