Lula da Silva entre a glória e o ocaso

Lula da Silva foi um ícone político que construiu o seu poder com base na sua biografia. O nordestino fez da sua história de pobreza a alavanca para a mudança no Brasil. O operário-presidente cumpriu boa parte da promessa. Ter-se-á esquecido dela nos labirintos do poder?

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Lula da Silva luta agora pela protecção de um ministério LOVIS CRANCHI/REUTERS

De Garanhuns até Guarajá e daqui para Brasília, Lula da Silva é o protagonista de uma biografia capaz de alimentar a mais sentimental das novelas. O seu caminho até à presidência é lento, sinuoso, mas determinado. Foi adorado, idolatrado e odiado em doses iguais. Saiu em grande do Palácio da Alvorada. Mas a enxurrada da operação Lava-Jato ameaça arrastar o seu brilho na torrente da corrupção. Cinco momentos de uma vida intensa e improvável. Principalmente no Brasil.

13 de Março de 1979

A ditadura militar prometera abertura em 1977, mas a abertura estava a ir longe de mais. Principalmente no triângulo operário do Sul de São Paulo. Depois de organizar as primeiras greves, o sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo torna-se uma força que lidera a mudança política. Lula da Silva tem 35 anos e sabe como ninguém interpretar o significado da declaração do Presidente (e general) João Baptista Figueiredo, que revelara o “propósito inabalável” de avançar para a democracia. Chegara a São Paulo em 1952, na vaga de migrantes pobres atraída pela industrialização. Em 1966 vai trabalhar para a Indústria Vilares, da família do pioneiro da aviação Santos Dumont. O seu irmão mais velho, Frei Chico, militante comunista, aproxima-o da oposição. Chega à direcção do sindicato em 1972 e três anos depois apresenta-se de fato e gravata na condição de presidente. Mas o que era uma organização tutelada e dedicada à assistência dos metalúrgicos torna-se depressa numa poderosa máquina de mobilização. Em 1978 a fábrica de camiões Scania é paralisada. Em Março do ano seguinte, com a cidade de São Bernardo ocupada por um forte aparato militar, uma greve geral afronta a ditadura. No dia 13, no Estádio da Vila Euclides, os jornais e as televisões captam a imagem de Lula a discursar para mais de 80 mil operários. Lula será preso, mas por pouco tempo. Tinha nascido uma estrela. “Fui tratado como a coqueluche de toda a esquerda brasileira, de todos os sectores conservadores, de todos os liberais, etc.”, diria.

14 de Dezembro de 1989

No auge das greves, Lula pensa na criação de um partido operário. O seu poder era enorme. Em 1978 ajuda Fernando Henrique Cardoso (F.H.C.) a chegar ao Senado (suplente de Franco Montoro). A ideia de criação do PT começa por aí e em Fevereiro de 1980 o novo partido é apresentado em São Paulo. Era uma coligação de trostkistas, católicos progressistas, intelectuais de primeira linha como Sérgio Buarque de Hollanda (pai de Chico Buarque), protagonistas do activismo social como Paulo Freire, ou o camponês nordestino perseguido pela ditadura Manuel da Conceição. Lula começa a brilhar. Obtém mais de um milhão de votos nas estaduais de 1982, afirma-se na luta pelas Directas Já (eleição directa do Presidente), em 1986 é o deputado federal com mais votos em São Paulo (660 mil) e o PT elege no ano seguinte os seus primeiros perfeitos em grandes cidades – São Paulo e Porto Alegre. Nas primeiras presidenciais da era constitucional, em Novembro do ano seguinte, Lula supera oposicionistas históricos como Ulysses Magalhães e chega à segunda volta num confronto com Collor de Mello. No dia 12 de Dezembro, a candidatura de Collor põe a correr a notícia que Lula tinha oferecido dinheiro a uma sua antiga namorada, Miriam Cordeiro, para que abortasse. A notícia era falsa, mas a 14, no debate crucial com Collor na Globo, Lula aparece nervoso e hesitante. No dia seguinte, a estação sublinha o seu suor e escolhe os momentos de dificuldade de Lula – a Globo é uma ancestral inimiga de Lula. Collor ganharia com 35 milhões de votos contra 31 milhões de Lula.

4 de Outubro de 1998

Lula e o PT crescem com a democratização e com a destituição de Collor de Mello, mas esse reforço de poder não basta para travar a ascensão da estrela do centro-esquerda que conhecera de perto em 1978 – Fernando Henrique Cardoso. Lula desvalorizou o poder eleitoral do Plano Real, que F.H.C. lançara ainda na presidência de Itamar Franco (que substituíra Collor) – considerava-o o “cruzado dos ricos”. As classes populares, cansadas de viver com níveis de inflação que chegaram a ultrapassar os 1000% ao ano, pensavam o contrário. Fernando Henrique ganha à primeira volta e uma emenda constitucional permite-lhe recandidatar-se em 1998. Lula encabeça então uma frente de partidos de esquerda, mas, mais uma vez, perde. Terá percebido aí que a pose radical de feição sul-americana estava condenada a prazo num país que se normalizara económica e politicamente. Entre a privatização e o protesto sindical que provoca conflitos com a polícia na Bolsa do Rio de Janeiro em vésperas de eleições, os brasileiros preferem a primeira. F.H.C. volta a bater Lula à primeira volta por 53% contra 31,7%.

27 de Outubro de 2002

É difícil acreditar que um candidato presidencial derrotado três vezes possa ser vencedor à quarta. Mas foi isso que aconteceu em 2002. O fim da era F.H.C. tinha deixado um país melhor e mais moderno. O tempo era de pragmatismo, mais do que de promessas de transformação socialista. Lula emagrece, apara a barba e o cabelo, contrata “marqueteiros”, promete uma política financeira moderada e garante que a injustiça da desigualdade será a sua prioridade. Tinha nascido o “Lulinha paz e amor” que gerou uma extraordinária vaga de fundo no Brasil. Já não eram apenas as camadas pobres ou os operários a ouvir a sua mensagem: as classes médias começaram a acreditar na possibilidade de um país normal, de perfil europeu, sem cidades perigosas e inóspitas. Lula fez passar a sua mensagem. Na segunda volta das eleições, a 27 de Outubro de 2002, Lula é eleito com 60% dos votos. Nessa noite, dezenas de milhares de pessoas inundam a Avenida Paulista, em São Paulo, entre risos e lágrimas de comoção. O povo, diziam, tinha finalmente chegado ao poder.

16 de Março de 2016

Dois mandatos bem sucedidos na presidência reforçam o papel de Lula no PT. Ele é o líder incontestado, capaz de impor sem dificuldade a sua sucessora. Em 2010, Dilma garante a continuidade do PT no poder e Lula torna-se uma espécie de sombra. Entre conferências no país ou no estrangeiro e a gestão da sua fundação, tem tempo para observar os interesses partidários, carreiras e rumos políticos. Dilma, uma ex-gerrilheira, tolera-lhe os movimentos, mas não abdica da sua margem de manobra. O partido parecia unido. E precisava. As alterações do ciclo económico das matérias-primas começam a gripar a máquina exportadora do Brasil. A balança externa agrava-se, o desemprego sobe, os rendimentos congelam e os programas sociais abrandam. Dilma consegue fazer-se reeleger numa segunda volta, em 2014, mas por pouco. A crise e os estilhaços do caso Lava-Jato começavam a minar o PT. Figuras gradas do PT são presos. As suspeitas chegam a Lula e a Justiça abre-lhe um inquérito. O outrora todo-poderoso exemplo do sonho da esquerda fica em causa. Luta agora pela protecção de um ministério e admite ainda recandidatar-se em 2018. Só um milagre o permitirá. Mais do que um activo político, Lula é um fantasma da sua biografia.

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