Líbia: o cauteloso optimismo do país com três governos

A mais recente experiência democrática na Líbia faz avanços surpreendentes em Trípoli. Tem por diante um país dividido, empobrecido e desesperado por ultrapassar os últimos cinco anos em espiral de violência.

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Em vez de ser recebido com atentados ou tentativas de homicídio, Serraj viu a população de Trípoli de braços abertos. AFP/Governo do Acordo Nacional

Fayez al-Serraj parece operar no reino do surpreendente. Não se supunha que o homem que um painel de rivais de guerra designou em Marrocos como novo primeiro-ministro da Líbia conseguisse chegar a Trípoli depois de as poderosas milícias islamistas que controlam a capital terem encerrado o espaço aéreo sobre a cidade de maneira a impedir a chegada dos “infiltradores”. Serraj e o seu novo Governo de Acordo Nacional não o fizeram pelo ar, mas pelo mar, desde a Tunísia, onde aguardaram durante semanas pelo momento de entrarem no país que o mundo espera que consigam unir.  

O sinal por que esperavam para entra no país chegou a 13 de Março, quando iniciaram oficialmente funções como representantes legítimos do povo líbio. Na prática, porém, os homens que desembarcaram em Trípoli na passada quarta-feira são apenas o mais recente dos três Governos em funções. A capital é governada por um parlamento de pendor islamista, em muito semelhante às milícias que em 2014 se revoltaram contra os resultados das eleições legislativas desse ano e expulsaram o parlamento eleito para o Leste, Tobruk, onde continuou a governar. Foi o único governo com reconhecimento internacional até que em Dezembro, desejosos de romper com os últimos cinco anos de marasmo líbio, representantes dos dois parlamentos rivais sob supervisão das Nações Unidas constituíram o Governo de Serraj.

Muitos esperavam que os recém-chegados fossem rapidamente atacados por milícias opositoras ou grupos jihadistas durante os seus primeiros dias em Trípoli. Não o foram, segundo o Le Monde, graças a um “trabalho de contactos” clandestino que a ONU fez na véspera. Assim, pacificamente aquartelado na base naval de Trípoli, Serraj conseguiu operar uma segunda surpresa: as mesmas instituições civis, milícias e cidades fiéis que sustentavam até agora o suposto governo da capital declararam o seu apoio a Serraj. Ainda não existe nota oficial de dissolução do parlamento, mas, de acordo com Mattia Toaldo, especialista na Líbia no European Council on Foreign Relations, isso é apenas uma questão de tempo. O parlamento de Trípoli, afirma, está internacionalmente isolado, não tem força militar e vê que a população está feliz com a perspectiva de estabilidade.

Os surpreendentes avanços em Trípoli parecem ser a melhor hipótese para a formação de um Governo democrático de consenso na Líbia depois do breve estado de graça que se seguiu à morte de Muammar Khadafi, em Outubro de 2011. Pelo menos um quinto da população está malnutrida e a economia nacional deve cair mais do que qualquer outra no mundo até Dezembro. Por todo o país germinam redes de tráfico humano e grupos jihadistas, que se aproveitaram do vazio de poder para construírem plataformas de operações no Norte de África. O grupo Estado Islâmico é de todos o mais alarmante: controla 180 quilómetros na costa de Sirtre e entre quatro a seis mil combatentes, segundo revelou esta sexta-feira o comando africano do Exército dos Estados Unidos — o dobro do que tinha no ano passado. “Só quero alguém que lidere de verdade e ponha um fim a todas as divisões”, diz o jovem Kaiser ao correspondente do Le Monde em Trípoli. Para muitos, esse alguém é Serraj e o seu novo Governo. “Vai no bom sentido, sinto-me um pouco melhor”, defende o seu amigo Mohamed.

Haftar, o controverso

Com Trípoli do seu lado, o novo Governo olha para Tobruk. Só com o apoio formal dos dois parlamentos é que Serraj e a sua equipa podem começar o seu mandato de um ano para fazerem aprovar uma nova Constituição. O caminho não será fácil: só 75 dos 188 deputados no Leste integraram as negociações das Nações Unidas, Tobruk tem patrocinadores externos como o Egipto e os Emirados Árabes Unidos que se querem impor e, pairando sobre tudo, está a controversa figura do general Khalifa Haftar, o homem na frente daquilo que a Líbia tem mais próximo de um Exército — Khadafi não tinha forças armadas, por receio de que um dia se virassem contra ele.

Haftar pode revelar-se tão importante na transição política da Líbia como o novo primeiro-ministro. O general diz estar pronto para reconhecer o novo Governo, mas recusa-se a receber ordens de um ministro da Defesa. Homem poderoso no Leste, poucos em Trípoli parecem dispostos a aceitá-lo como figura de poder e ainda menos como membro de Governo ou chefe do Exército — Haftar reclama estar numa campanha antiterrorismo, o que, na sua opinião, inclui várias figuras que hoje se sentam no parlamento de Trípoli. Nos termos do acordo negociado em Marrocos, o parlamento de Trípoli deve tornar-se um órgão consultivo com direito a veto e os deputados em Tobruk devem formar o poder legislativo. A união entre Leste e Oeste é crucial e Haftar está no caminho.

O desacordo político na Líbia esconde um programa das Nações Unidas que muitos argumentam ter sido apressado para preparar terreno a uma nova intervenção ocidental: os mesmos países que bombardearam Khadafi em 2011 e abandonaram depois o país à sua sorte preparam hoje uma intervenção militar de pequena escala para combater o exponencial crescimento do Estado Islâmico — Estados Unidos, Itália, França e Reino Unido têm já desenhada uma equipa com 6000 homens. Para o fazer, porém, precisam de um Governo de consenso que convide uma missão militar estrangeira. “As Nações Unidas apressaram-se para chegar a um acordo insatisfatório para muitas figuras líbias com influência que pode acabar num novo impasse”, argumenta o antigo diplomata francês na Líbia, Patrick Haimzadeh. “Qualquer intervenção estrangeira, para além de denegrir a credibilidade do [novo] Governo e perturbar seriamente qualquer esforço para reconstruir a nação e o Estado, só alimentaria a propaganda do Estado Islâmico.”

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