Jovens achados na rua

Há um ano que os brasileiros não páram de sair em protesto. Marina, Rafael, Carolina, Pilar, Serginho são alguns dos jovens de classe média com quem falámos. Tentaram achar o seu direito nas ruas em Junho de 2013. Agora, com a Copa à porta, vão voltar.

Foto

O estopim — a faísca — começou em São Paulo, quando se anunciou o aumento do preço dos bilhetes dos transportes de 3 para 3,20 reais. A 6 de Junho começaram assim os protestos na capital do estado mais rico do país, desencadeados pelo Movimento do Passe Livre (MPL), a organização que luta por transportes públicos de graça.

Ganhando corpo e alastrando-se a outras cidades, os protestos mostraram um cartão vermelho ao Governo de Dilma Rousseff. Mas mostraram também um cartão vermelho à política de um país que tem altos níveis de corrupção e de desigualdade e baixos índices de desenvolvimento humano.

Apesar de se terem criado muitas manifestações dentro das manifestações, de se gritarem por coisas muitas diferentes, quatro temas fizeram-se ouvir com força: o fim da corrupção e a exigência de melhores transportes, melhor saúde e melhor educação. Ao lado de uma classe trabalhadora tradicionalmente mais reivindicativa, apareceu ainda uma classe média e jovem — em linha com movimentos urbanos como os Occupy e os protestos da Primavera Árabe, convocados através das redes sociais.

Depois de Junho, e apesar de menos frequentes e com menos “gás”, os protestos não pararam. Do Não Vai Ter Copa (contra o Mundial) aos rolezinhos (os encontros de jovens da periferia nos shoppings que podem ser vistos como contestação), as formas de protesto continuam até hoje. Irão os brasileiros de novo em massa para as ruas durante o Mundial, que começa em Junho? Retratos de brasileiros da classe média que estiveram a tentar achar o seu direito nas ruas há um ano — e que dizem que irão voltar.

Mais medo de polícia do que de bandido

Ela já fez uma canção a jogar com os títulos da Economist. Foi só olhar para a parede do seu quarto em Brasília, forrada com capas da revista britânica, e começar a juntar ideias.

Marina Serra dos Santos, 17 anos, repete o refrão para nós (ver webdocumentário em www.publico.pt). E desconstrói a ideia de que é uma jovem intelectual leitora de uma das revistas mais influentes na Europa: é fã, sim, do grafismo e das capas, mas ao todo deverá ter lido umas duas na vida, porque é “muita informação”.

Portanto a montagem que temos à nossa frente “foi mais expressão artística do que protesto”. Protesto foi, sim, a música que compôs, Polícia, depois de a 7 de Setembro de 2013 ter sido abordada por polícias numa das manifestações em Brasília. A letra é a revolta de alguém que “tem mais medo de polícia que [de] bandido”. Marina estava na rua e carregava uma mochila, onde tinha posters de uma campanha que formou com os amigos em 2012, World Towards Freedom (WTF) — posters que tinham sobrado das centenas que ela imprimiu com dinheiro que pediu à mãe “como se fosse um presente”, e que tinham palavras de ordem sobre sustentabilidade, direitos humanos, direitos dos animais, etc. “Só por eu estar andando, o Polícia Militar me fez esvaziar a mochila e dar tudo o que eu tinha dentro para ele, sem razão nenhuma. Eu perguntei: ‘Porquê?’ Ele falou que eu não podia questionar ele e que manifestação não era papel de cidadão. Foi absolutamente ridículo, parecia que estava numa ditadura.” Marina tinha também uma máscara, que lhe foi confiscada e não devolvida. Tinha também uma caneta que o polícia agarrou, fez cair no chão e a obrigou a ir buscar. “Eu falei: ‘Porquê? Eu não tenho que pegar a caneta.’ E aí ele me ameaçou: ‘Você está me questionando?’ Eu não queria que ele me ferisse e peguei a caneta. Mas fiquei muito revoltada.” Quando estava a ir embora, chegaram uns jornalistas que lhe perguntaram o que tinha acontecido, ela contou e os polícias deram-lhe os cartazes de volta. Algures na letra da música, diz assim: “Lute pelo direito/ de ter orgulho estampado no peito.”

Filha de dois jornalistas, Marina, que assina como Marina Saint-Hills (marinasaint-hills.com/) vive num dos blocos nobres da Asa Sul de Brasília. Estudou em colégios (está a terminar o secundário), viveu em Nova Iorque quando era pequena, estava na Austrália num programa de intercâmbio quando se deram as manifestações de Junho de 2013. Mas ela já tinha ido para a rua antes.

O despertar da sua consciência aconteceu com o movimento Occupy (2011). “A tendência na nossa geração é ser meio precoce porque a gente tem acesso a muita informação. Acho que é normal desde bem novo estar engajado.” Como começou? “Com 15 anos, comecei a perceber: não é possível que a sociedade, do jeito que ela é, seja certa. Comecei a perceber que havia injustiças. Eu vivia num mundo de fantasia quando era menor e aí levei um baque de realidade. Comecei a pegar ônibus, a andar de transporte público sozinha, a ir para certos lugares que não ia antes e a perceber que a vida não era uma utopia. Li muito sobre o movimento Occupy que estava rolando na época nos EUA, e vi: ‘Nossa, tem gente que quer mudar. Eu também quero mudar.’ Foi aquela coisa de 99% e 1% — não era nem de esquerda, nem de direita, achava injusto ter poucas pessoas com muita coisa e muita gente com pouca coisa, e isso é completamente o Brasil.”

Estamos sentadas no quarto de Marina, um quarto de adolescente onde há um peluche ou fotos dela com a T-shirt contra a corrupção, há guitarras e cartazes com a palavra “paz” escrita em grande, fotos de formatura, computador, telemóveis. Ela acaba de gravar um EP em São Paulo, num estúdio, com músicas que compôs — algumas falam de uma das questões que mais a movem, o ambientalismo. A janela do quarto dá para as árvores, lá fora chove.

“Não basta a gente mudar o sistema político, acho que a revolução um dia pede algo maior, pede uma mudança interna nas pessoas”, diz, com segurança, a jovem de 17 anos que vai votar este ano pela primeira vez e fazer muita pesquisa até ao último momento sobre os candidatos, porque nunca se sabe quando eles mudam de ideias ou apresentam uma proposta com a qual pode não concordar (o Brasil é dos poucos países em que se pode votar a partir dos 16 anos).

Marina esteve numa pequena cidade na Austrália e viu como era possível as classes mais baixas viverem bem, uma utopia num país como o Brasil, nota: “A gente investe nas coisas erradas. Eu pessoalmente amo futebol, mas não acho que era hora de investir na Copa, era hora de investir na educação, na saúde, no transporte público, nas coisas essenciais. O Brasil pode ser uma das maiores economias do mundo, mas a qualidade de vida aqui não é compatível com o tamanho da economia.” Soluções: “É fácil: pára de roubar o dinheiro público e investe nos sectores públicos.”

Quando as primeiras manifestações surgiram, ela estava na Austrália. Lembra-se de um dia ter acordado e ver no Facebook as fotos dos amigos a ir para manifestações. “Eu estava muito feliz mesmo. Quando eu vi o vídeo da primeira manifestação, fiquei tão emocionada. Porque quando eu estava no Brasil o que eu mais queria era ver algo assim, tipo muita gente na rua, muita gente querendo mudança.” Depois, criou um álbum com as fotos dos protestos e foi explicando aos amigos australianos o que estava a acontecer. “A gente está vendo o que o Governo está fazendo.” E “foi como um efeito dominó — quanto mais pessoas iam, mais pessoas queriam ir”.

Mas as manifestações também tiveram efeitos práticos, como uma proposta de tratamento de homossexuais, conhecida como Cura Gay, feita pelo deputado federal Marco Antônio Feliciano — eleito pelo Partido Social Cristão e pastor, Feliciano foi em 2013 presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara de Deputados, mas deixaria o cargo no final do ano. “A gente estava na rua protestando contra o preconceito, contra a homofobia, contra o machismo, então foi uma coisa muito boa que conseguiu vencer.”

Porém, Vai ter Copa, sim, confia — até porque o futebol faz parte do Brasil. “A gente já investiu tanto dinheiro.” Só que acredita que 2014 vai continuar a ser um ano de protestos, “até porque a gente quer mostrar para o mundo que o Brasil não está satisfeito com a actual situação do país e com a opção de investir na Copa”.

Para as manifestações durante a Copa, já tem uma ideia: andar pela cidade com uma T-shirt a dizer aos turistas que está disponível para traduzir para inglês o que está acontecendo, “para eles entenderem porque é que as pessoas estão na rua”.

O que a faz indignar-se mesmo é isto: “Ver nitidamente o Brasil que pode ser, a imagem de um Brasil que funciona, de um Brasil que tem mais oportunidades para a população inteira. Porque eu sei que pode acontecer, sei que o Brasil pode virar um país de primeiro mundo, um país excepcional, sacou?”

Tenho injustamente acesso à universidade pública

Nas imagens de arquivo, vê-se isto: uma multidão de braços no ar, que por vezes grita palavras de ordem, por vezes canta e dança, por vezes é iluminada pela energia comum. Num desses dias de Junho de 2013, Rafael da Escóssia Lima atravessou o edifício do Congresso Nacional em Brasília, subiu a rampa e tocou nos “pratos”. “Tinha muita gente, muita gente. Foi das coisas mais incríveis que vi na minha vida”, conta. Ter tocado nos “pratos” foi de um simbolismo enorme, foi “tomar a casa”, mostrar que a população tem “a possibilidade de reivindicar” e foi “mostrar que a população tem poder”.

Sair foi uma obrigação. Até porque este jovem de 20 anos acredita que é “necessário ter um posicionamento protagonista”, intervir: “Se tenho consciência da possibilidade de mudança por meio de movimentos sociais, da reivindicação e, se não contribuo, então já estou assumindo um posicionamento conservador, uma postura apática.”

Saltou da cadeira por causa de “tudo” o que está mal no Brasil. As ruas de São Paulo a Salvador mostraram uma massa enorme de pessoas a protestar por coisas diferentes: melhor saúde e educação, “falta de inclusão de segmentos minoritários, a questão feminista, homossexual, a questão racista, o fim do voto secreto parlamentar”. O Mundial de futebol e o aumento do preço dos bilhetes de autocarro em São Paulo foram apenas os estopins.

Há um ano, este estudante de Direito na Universidade de Brasília assumiu-se como homossexual e isso mudou a sua vida. Fê-lo colocar-se numa posição política mais aberta e fez com que “visse o mundo com olhos mais livres e mais contestadores”, conta-nos sentado num banco do jardim ao lado de sua casa em Brasília, num dos blocos da Asa Sul. Quando nos encontrámos em Janeiro, ele tinha acabado de chegar da Europa de uma viagem de férias com os pais, ambos funcionários públicos — a mãe trabalha no Tribunal Superior do Trabalho e o pai na Agência Nacional de Energia Eléctrica.

Rafael tem um historial de activismo político que começou pelos 17 anos. A primeira participação foi nas marchas contra a corrupção a 7 de Setembro de 2011, muito por causa “da absolvição da deputada Jaqueline Roriz” num caso em que era acusada de corrupção.

Sentiu a pressão dos movimentos que se tornam virais — mas a pressão nasceu afinal em si próprio. “Falei: se nós jovens não fizermos alguma coisa, quem vai fazer?”

Mobilizou outros para a segunda marcha contra a corrupção, um mês depois. A seguir criou o grupo Juventude Consciente, que, entre outras acções, promoveu um abaixo-assinado pelo fim do voto secreto parlamentar dos deputados [o voto aberto nas votações em processos de cassação de parlamentares e no exame dos vetos presidenciais seria aprovado em Novembro de 2013]. Hoje pertence ao movimento estudantil Honestinas. Politicamente, está mais à esquerda. “Sei que sou de uma classe no mínimo diferenciada da população e que estou acima da média. Não posso ser hipócrita e esquecer que nasci numa família muito mais abastada do que 90% da população.”

Através do seu exemplo, dá um retrato do sistema de ensino público no Brasil, algo tão criticado nas manifestações, e fá-lo num discurso de rajada, todo muito organizado.

“Sou classe A. Estudei em colégios. E hoje em dia tenho injustamente acesso à universidade pública. Veja bem: consegui o acesso através do vestibular, para passar no vestibular preciso fazer um cursinho, uma escola particular. Inúmeros jovens que não conseguem ter acesso a esses cursinhos ou escolas porque são muito caros já estão excluídos do processo. Antes que o processo se inicie, eu já tenho a minha concorrência reduzida a mais do que a metade.

Ou seja, não existe justiça com desigualdade de condições. Obviamente que foi pelo meu esforço, pelo meu estudo, mas isso é contraditório no Brasil: para você conseguir acessar a universidade pública, precisa de estudar em escola particular.

O que deveria estar sinalizado ali é o mérito, é a meritocracia, é o desenvolvimento pessoal, é o estudo. Só que não é isso que é analisado, porque existem códigos e signos por detrás do processo selectivo que não estão explícitos na prova, mas que serão levados em consideração na hora de seleccionar o candidato: a classe social, a condição de pagar um cursinho, a cor da pele. Mesmo o negro rico já possui uma desvantagem em relação ao branco rico: o negro rico sofre preconceito a vida inteira mesmo que seja rico.”

Rafael estuda teatro, já dirigiu vídeos de campanhas da Juventude Consciente, como estudante interessa-lhe o potencial teórico de um grupo na UNB que se chama Direito Achado na Rua — expressão criada pelo jurista Roberto Lyra Filho — cujo objectivo é afirmar que “o Direito não se cria na lei, mas a lei é um reconhecimento de um direito preexistente”. “O direito à moradia, ao transporte, à segurança, à educação faz-se no dia-a-dia, na luta dialéctica de grupos sociais, daquele grupo social que se afirma na sociedade e por isso merece o reconhecimento do Estado. Então as manifestações são essenciais para que certos direitos sejam reconhecidos. Os nossos mestres dizem que o Direito se acha nas leis, na jurisprudência dos tribunais, que se acha na prática jurídica e que, mediante a actividade do legislador no momento que faz a lei, se produz o direito. O que o direito achado na rua pauta é que na verdade é um direito que a população reivindica e conquista mediante a sua própria luta.”

Conversámos com Rafael num dia em que estão marcados dois protestos em Brasília, um rolezinho no shopping Iguatemi, onde há lojas de luxo, e um Não Vai Ter Copa, no Brasília Shopping. Rafael não sabia do segundo e planeava estar no primeiro (mas acabou por não o fazer). Iria apenas observar o rolezinho — os famosos encontros de jovens da periferia em shoppings que geraram a polémica de racismo no início do ano — porque “os rolezinhos são mais específicos das classes sociais mais baixas, que reivindicam o espaço deles no ambiente da classe média”, diz. “Já sou da elite, então não faz muito sentido ir reivindicar um espaço que já é meu.”

Mas tem observado o fenómeno, que depois do crescendo de Dezembro até Janeiro se tornou menos frequentemente retratado nos media: “O que se reivindica no rolezinho é o direito a esses espaços. Essas pessoas são excluídas 365 dias por ano, elas não têm acesso a nenhum dos espaços típicos de classe média, alta. O que as pessoas querem é simplesmente ter direito a acessar a esses espaços, mesmo que não consumam nada. É uma contestação ao statu quo”, analisa.

Irá a mais manifestações, inclusivamente quando a Copa começar? “Participar nas manifestações é fundamental, é a nossa parte individual”, responde.

A Revolução Francesa não começou com os brioches? A nossa situação é mais ou menos a mesma

A Praça dos Três Poderes em Brasília é um lugar inóspito neste Verão chuvoso. Estamos ao centro, virados para o Congresso Nacional: de um lado, o Supremo Tribunal Federal; do outro, o Palácio do Planalto. Foi uma praça “inicialmente projectada para ser um local onde a população pudesse lançar os seus pleitos para os três poderes — executivo, legislativo e judiciário”, descreve Rodrigo Montezuma. “Hoje a gente vê essa praça completamente cercada, um aparato de segurança muito forte.” Lá está a segurança protegendo os edifícios.

Foi para este lugar que convergiram grandes demonstrações em Junho de 2013. Hoje, continua a ser palco de manifestações frequentes, embora mais pequenas.

Rodrigo Montezuma, 45 anos, Cristia Corrêa de Lima, 43, e a filha Illyusha Montezuma, 22 anos, são uma família de manifestantes. Participam em todas desde 2010, activamente. Ele é formado em Medicina Veterinária, mas está a fazer um segundo curso em Direito, é bancário, consultor em Agronegócio e voluntário em organizações como o Instituto de Fiscalização e Controlo (organismo que promove a ética e moralidade na gestão dos recursos públicos). Illyusha acabou Ciência Política, é estudante de mestrado na Universidade de Brasília (UnB). Cristia é funcionária pública no governo do distrito federal há nove anos e terminou o segundo curso em Gestão de Políticas Públicas na UnB — aparece na Praça dos Três Poderes com uma T-shirt que veste sempre que pode: “Brasil Contra a Corrupção”, lê-se.

A corrupção é um problema constantemente referido pelos manifestantes. Ainda recentemente, o Instituto de Pesquisa Datafolha divulgava que, para 68% dos 2614 inquiridos, a corrupção estava pior hoje do que no período da ditadura; no índice global de Percepção da Corrupção 2013, elaborado pela Transparency International, o Brasil apareceu em 72 num ranking de 177 países (Portugal estava em 33º).

Foi, aliás, uma das bandeiras que fez esta família sair à rua várias vezes, e mobilizar pessoas para a grande marcha contra a corrupção em 2011 — cerca de 25 mil pessoas em Brasília, segundo cálculos da Polícia Militar do Distrito Federal da altura; 60 mil segundo alguns grupos e esta família.

Eles organizam protestos, pintando as caras, fazendo acções de marketing que chamem a atenção dos media: um autocarro que se chama Papuda Móvel (Papuda é o nome de um presídio em Brasília, onde estão políticos como o ex-chefe da Casa Civil José Dirceu, condenado por corrupção), um balão gigante, uma escultura com uma retrete e papel higiénico, faixas com palavras de ordem “corrupção não”, “segurança sim, transparência sim, saúde sim”, tudo devidamente documentado em álbuns de fotografias.

Quando começa a falar, Rodrigo empolga-se. Cristia também. Illyusha confessa que é complicado fazer-se ouvir em casa, mas na família tentam todos aprender uns com os outros. Illyusha, que se interessa muito sobre temas feministas, descreve o ambiente de Junho: sem líder para os “media puxarem”, com várias organizações, “você via nas próprias passeatas” a diversidade. “Tinha gente que estava lutando contra uma lei, contra um político específico, contra preconceito. Pulveriza o significado mas está todo o mundo insatisfeito.”

Os políticos, acusa Rodrigo, estão completamente desconectados da realidade e usufruem dos recursos públicos em benefício privado. Cristia explica que trabalhar no serviço público a fez perceber como funciona — ou não funciona — a máquina e porque é que o povo se insurgiu. “As pessoas se mobilizaram contra essa vergonha que vêm presenciando descaradamente nos media. Todo o dia é dinheiro na cueca, na meia, camarão para bancar os nossos representantes, enquanto a gente vê as pessoas sem gás, sem soro… Bilhões gastos na saúde e a gente não vê onde são gastos. Alguma coisa está errada, é preciso acordar essas pessoas”, diz.

Aquilo que têm feito é um trabalho de “formiguinha”, “mas uma hora tem de começar”, lembra Cristia. “A Revolução Francesa não começou com os brioches? Então, a nossa situação é mais ou menos a mesma.” [Conta-se o mito de que Maria Antonieta teria dito “se o povo não tem pão, que coma brioches”, em resposta a protestos de fome da população]. “Os brioches da Dilma [Rousseff] são os estádios, a Bolsa Família. A gente não tem como manter uma população de 200 milhões de habitantes segurada através de bolsas. Quem sustenta isso? É uma classe média, é uma classe trabalhadora, que já não aguenta mais, usurpada pelos juros: para conseguir consumir, a gente precisa de se endividar e a gente está chegando num patamar perigoso.”

Num Brasil que está em democracia há menos de 30 anos, depois de uma ditadura militar (1964-1985), a maturidade democrática ainda não é uma certeza, “ainda tem uma coisa meio monárquica”, analisa Cristia. “A gente tem um rei e quer que o rei cuide da gente. Talvez algumas pessoas já tenham entendido que o rei — que é o Estado, é o Presidente — não vai cuidar e que precisamos fazer parte dessa estrutura, coordenar de forma conjunta as decisões e que [isso] não pode vir de cima para baixo, tem que começar a partir do que é interessante: é o hospital ou é o estádio?”

Rodrigo está mais no centro-direita, Illyusha situa-se mais à esquerda e Cristia começa a concordar mais vezes com a filha, mas nenhum é filiado em qualquer partido, porque hoje “não temos oposição, eles estão todos coligados e misturados”, defende Cristia. Parte da população o dever de fazer, de gerar oposição, de questionar. Essa é a nossa intenção: tirar as pessoas da zona de conforto.”

Ir para a rua e questionar o sistema tem consequências positivas, e Cristia enumera um rol delas: “O mensalão só foi julgado porque as pessoas estavam na rua, o voto aberto [parlamentar] só foi votado porque a gente foi exigindo, a lei da ficha limpa só foi votada porque fomos nós que estivemos na rua pedindo [lei da ficha limpa: legislação de 2010 de iniciativa popular que torna inelegível um candidato que tiver o mandato apreendido ou que tenha sido condenado, por exemplo]. Manifestar-se, botar a boca no mundo, faz a diferença.”

É por isso que uma das bandeiras de Rodrigo neste momento é pedir a renovação dos políticos — de todos — nas próximas eleições. “É o momento que a população tem de resgatar o poder do seu voto, é o momento que tem de falar: vamos renovar essas casas legislativas, tirar todo o mundo que tomou a política como uma profissão. Ser político não é uma profissão, tem que ser um momento de doação para a sociedade.” O ideal, segundo a sua perspectiva, seria as pessoas investigarem, saberem qual é o passado do candidato, votar em quem tem espírito de colectividade, diz.

Sobre as manifestações de Junho, lembram ter sido uma construção, um processo em crescendo. “As pessoas têm o Brasil como um país muito pacato, um povo muito sereno e aquilo impactou o mundo inteiro pela intensidade da revolta com os gastos na Copa. Porque se prometeu que junto com os estádios a gente teria melhores transportes, saúde, segurança, coisa que a gente não viu. E as pessoas provavelmente irão às ruas novamente quando a Copa do Mundo correr aqui.”

Eles — Rodrigo, Cristia, Illyusha — irão? Quantas vezes? “Quantas forem necessárias”, responde Cristia pela família. “A gente vai até não poder mais. É a única coisa que o ser humano pode fazer: ou ele muda, ou ele é engolido pelo sistema.”

A correlação de forças mudou, a juventude veio para a rua e vamos permanecer na rua

Dezembro de 2013 foi o mês em que a palavra “rolezinho” se começou a repetir nos media brasileiros. Geraram grande polémica os encontros marcados entre jovens da periferia, através das redes sociais, para passear dentro do centro comercial (ou ir e vir, como é traduzida a expressão), juntando às vezes grandes grupos. Porque alguns shoppings em São Paulo barraram a entrada a jovens e porque a polícia usou balas de borracha e violência para dispersar alguns encontros, levando a acusações de racismo.

Janeiro foi, assim, o mês em que se organizaram mais alguns rolezinhos, alguns espontâneos, outros marcadamente políticos e foi um destes últimos que acompanhámos. Sábado à tarde, dia 25 de Janeiro: o pré-encontro com alguns dos organizadores — Pilar de Freitas, Serginho Lopes e Franklin Rabelo de Melo — é na Asa Norte de Brasília.

Cerca de 3 mil pessoas confirmaram ir ao evento do Facebook, marcado no Iguatemi do Lago Norte, o centro comercial com lojas de luxo frequentado pela elite. De manhã, porém, os jornais titulavam que os proprietários do Iguatemi tinham fechado as portas para evitar distúrbios. “A gente deu o pontapé nesse rolezinho” porque acredita “que todo o mundo tem direito de vir”, diz Pilar de Freitas, 22 anos, estudante de História, num dos jardins da zona residencial onde nos encontramos. É um gesto “contra a segregação da periferia, de raça, de qualquer tipo de coisa”.

Franklin, 24 anos, estudante de serviço social da Universidade de Brasília, fala de um protesto contra a violência policial, motivado pelas “cenas lamentáveis” em São Paulo, em que “jovens da periferia foram violentados, desnecessariamente”. Esse rolezinho é diferente porque “tem um cunho político, tem um sentido de protestar contra a desigualdade social e contra o racismo”, continua Sérgio Lopes, 31 anos, bibliotecário. “É um objectivo mais político e mais consciente.” Contextualiza: o rolezinho “assumiu status de manifestação política muito em função da repressão policial, e também tem relação com os protestos do ano passado”. Mas desde Junho “existe um sentimento de que as pessoas podem mudar a realidade se elas forem para as ruas”.

Franklin e Pilar conheceram-se na ocupação da Câmara Legislativa em 2010, quando ali ficaram uma semana por causa da Operação Caixa de Pandora, um esquema de corrupção que envolveu políticos, inclusivamente o governador do Distrito Federal José Roberto Arruda. Aproximaram-se mais tarde. Frank e Sérgio são trotskistas e simpatizantes do PSTU (Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado), nenhum é militante — e Pilar participa no movimento pela legalização da marijuana.

Seguimos de carro, Pilar está ao volante. Franklin vai atendendo telefonemas pelo caminho, é ele a ponte principal entre vários contactos. Não sabe quantas pessoas espera. Mas diz que independentemente de serem dez ou mil o objectivo já foi cumprido: colocar o tema da segregação, da discriminação na agenda dos media.

Não levam faixas com palavras de ordem, não trazem megafones. Mas haverá quem leve. Se não os deixarem entrar no shopping, partem para a violência? “Jamais, de forma alguma. Até porque a gente está organizando esse rolezinho para protestar contra a violência da polícia”, responde Franklin prontamente.

Chega-se ao Iguatemi e torna-se caricata a desproporção entre forças de segurança/polícia e manifestantes. Estamos em frente ao enorme centro comercial, cercado por homens a proteger o edifício. Cá fora, não estão mais de dez manifestantes — estudantes universitários, alguns de juventudes partidárias e uns quatro jovens da periferia. Um rapaz saca de uma coluna de som e põe a tocar funk e até o Geração Coca-Cola dos Legião Urbana. Jovens vêm e vão. No final, terão lá estado umas 30 pessoas. Franklin dirige-se ao microfone e de repente é como se se transformasse num político combativo, muda o tom de voz e toda a sua persona com ela: “É lamentável a postura dos grandes empresários desse país. É lamentável que fechem as portas para os filhos da periferia, é lamentável que fechem as portas para os movimentos sociais e é mais lamentável ainda uma decisão antidemocrática que comprova que esses caras não sabem como conviver com o movimento pacífico e constitucionalmente previsto.”

Em conversa com a Revista 2, Sérgio Lopes comenta que o mínimo seria os proprietários sofrerem as sanções de não deixar os jovens das periferias entrar e “o mais correcto seria fechar estabelecimentos que pratiquem o preconceito”.

Entre os vários manifestantes, aparecem dois vendedores de água e geladinhos, desiludidos com a pouca afluência. Encontramos Mácia Teixeira, do Movimento Mulheres em Luta, à conversa com alguns dos organizadores. Veio apoiar um fenómeno social “que revela o problema de falta de segurança nas comunidades”: “A menina que quer usar saia curta, tirar foto bonita para colocar no Facebook sabe que se fizer isso numa rua de periferia pode ser estrupada [violada]. Qual é o lugar onde pode se exercer, ser bonita como ela quer, ser paquerada sem o risco do assalto, do assédio? Dentro do shopping. É no shopping que tem segurança, tem ar condicionado, é cheirosinho; as ruas são mal cuidadas, não têm segurança. O Estado não investe em segurança, em espaços de convivência saudáveis. O problema é que tem muita gente à margem do shopping: a classe mais alta aceita o outro mas individualmente, não em conjunto.”

Habitante numa cidade-satélite de Brasília, Aline Pereira, 28 anos, outra das organizadoras, já sentiu isso mesmo. Conta que algumas das crianças com quem trabalha (ela é educadora social de rua) fazem mesmo autocensura. “Uma vez entrei num shopping para a gente lanchar e aí eles pediram para que eu comprasse a comida e trouxesse para fora. Eles não enxergam esse espaço como sendo um espaço onde eles possam entrar.” Diz: “Trazer jovens negros e negras para o Iguatemi já é uma acção afirmativa, mesmo que eles não tenham o histórico de politização do que é o movimento negro, [porque] é um corpo num espaço em que ele não é bem visto.”

Uma das bandeiras do grupo é a desmilitarização da polícia. Em 2012, o conselho de Direitos Humanos da ONU pediu que se acabasse com esta força policial, acusada de matar, uma iniciativa da Dinamarca. Frank explica: “A gente acha que a estrutura policial no Brasil é totalmente arcaica e o primeiro passo para acabar com a violência policial contra estas manifestações pacíficas é a desmilitarização.” A polícia deve estar mais próxima das pessoas, defende. E é necessário também que os polícias tenham uma série de direitos, como o direito à greve, à sindicalização. Vão mais longe: “O comando da polícia precisa de ser eleito pela população, os delegados precisam de ser eleitos pela comunidade. A polícia não pode ser uma força acima e superior à sociedade.”

Ele próprio já sentiu a repressão policial na pele. Quando estavam a distribuir os panfletos para o rolezinho, Franklin foi abordado por uma viatura da polícia militar, conta. Tiraram-lhe alguns panfletos, “e disseram que se a gente queria guerra era para se preparar para a guerra”. “É um absurdo, uma atitude de intimidação. Como podem ver, o nosso movimento é totalmente pacífico.”

Entretanto, neste mesmo dia, 25 de Janeiro, acontece um outro protesto, Não Vai Ter Copa, marcado para duas horas depois, às 17h, no Brasília Shopping. Face à pouca adesão ao rolezinho, os próprios organizadores decidem ir ao outro protesto — ao início timidamente porque os Black Bloc, grupo anarquista que tem feito distúrbios em várias manifestações e provocado episódios de violência, estavam no Brasília Shopping e os rolezeiros não queriam ficar associados a violência. Polícia e polícia militar cercavam o edifício.

Mas Franklin já tinha ganho o dia. No Iguatemi, disse ao microfone: “Não se enganem, o nosso acto pode ser pequeno numericamente mas desde Junho do ano passado as coisas não estão mais como eram. A correlação de forças mudou, a juventude veio para a rua e vamos permanecer na rua.” E deixou “um recado”: “A gente não vai arredar o pé das ruas enquanto eles não ouvirem e não melhorarem a vida de todo o povo.”

Hoje entendo que sou uma voz política, que faço parte da política

É meia-irmã de Marina Serra dos Santos, nasceu também em Brasília mas vive há mais de três anos em São Paulo, onde a encontramos num dia de Janeiro.

Bairro de Higienópolis, zona nobre da cidade: o apartamento é dividido com uma amiga, estamos na sala de uns 15 metros quadrados, pouca coisa a decorar. Pagam 2500 reais por mês, cerca de 815 euros. O trabalho dela é incerto, a contrariar a ideia que tinha quando era pequena e que a fez dizer: “Cara, está aí uma coisa [ser actriz] que deve ser fácil! Eu estava redondamente enganada”, conta, a rir.

Ao contrário da irmã mais nova, Carolina não tinha ligação à política antes das manifestações de Junho. Há um antes e um depois dos protestos para ela, que explica assim: faz parte de uma geração que tinha pouco envolvimento político, apesar de existir “uma sensação de insatisfação geral em relação a várias coisas”, como os transportes, a roubalheira (dos políticos), etc. Era “tudo meio vago”, até porque “a gente não entende muito bem de onde vem, não sabe qual é o partido que é realmente ladrão, quem é correcto, não sabe nada”.

Acontece que depois dos protestos de Junho percebeu que não estava só, especialmente depois daquela quinta-feira “sangrenta”, dia 13 de Junho — quando houve vários distúrbios durante a manifestação contra o aumento do preço dos bilhetes de transportes públicos de 3 para 3,20 reais, e uma jornalista do jornal Folha de S. Paulo levou no olho uma bala de borracha, alegadamente atirada pela Polícia Militar. Carolina sentiu que não podia ficar mais em casa. “Até pessoas que nem eu, que não eram politizadas, tiveram de ir para a rua. A gente não sabia que tinha voz, a gente não sabia que podia falar.”

Foi assim que na segunda-feira seguinte, 17 de Junho, Carolina desceu as ruas de São Paulo com amigos, andou pela zona da Consolação até ao cruzamento da Avenida Brigadeiro com a Paulista, tentando esconder o vinagre da polícia, combinando com eles o que iriam fazer caso fossem apanhados (o vinagre servia para se protegerem do gás lacrimogéneo e estava a ser confiscado aos manifestantes). “Uma coisa interessante é que muitas pessoas eram de classe média, as que ficavam perto de mim, pelo menos”, conta, lembrando um dia emocionante em que se gritou “sem violência” por causa de episódios anteriores de distúrbios. E onde ouviu um homem gritar: “Eu pedi 28 anos para viver esse dia.” Ela própria recorda-o, emocionada: “Foi dos momentos mais bonitos que vivi na minha vida.”

É que desde então Carolina sabe que o seu “entendimento sobre política mudou completamente”. Percebe que “política não é necessariamente entender quais são os partidos, o que cada partido está fazendo, mas é entender o que importa para você e se você pode mudar o que importa para você”. Hoje envolve-se com questões sobre racismo, sobre feminismo, sobre liberdade de expressão, sobre a homossexualidade, sobre religiões.

De forma empolgada, Carolina explica a transformação pessoal: “Se me indignava, às vezes nem sabia ao certo se tinha direito de reclamar. Comecei a dar voz ao que me indignava. Hoje, entendo que sou uma voz política, que faço parte da política e quando alguma coisa está errada faço questão de deixar isso muito claro, principalmente pelo Facebook, que é uma ferramenta interessante e que ajudou muito nas manifestações.”

Tudo isto porque um dia quis protestar contra o aumento do bilhete de autocarro — o botão que a fez verdadeiramente saltar da cadeira: sem muito dinheiro, os 20 centavos iam fazer uma pequena diferença, ainda para mais quando o sistema de transportes públicos em São Paulo “é péssimo”. Foi, na verdade, “essa questão de: já tem corrupção, já está tudo errado, tem tanta gente pobre sofrendo, o transporte público é terrível e você ainda vem aumentar achando que a gente é burro?”

Os protestos mudaram o preço do autocarro, tornaram a corrupção um crime hediondo, mudaram uma coisa aqui e outra ali. Porém, no essencial, não mudaram muito, diz. Se houver manifestação anti-Mundial de futebol, ela participa. “Porque discordo completamente que eles gastem essa fortuna para que a Copa aconteça. A gente precisa de melhorias no nosso país. Talvez eu esteja sendo ingénua, mas acredito que a gente precisa mostrar que não está feliz com a forma como as coisas estão acontecendo.”

Olhamos para o percurso social de Carolina, pensamos nas manifestações e na descrição que fez de ver muita gente da classe média a caminhar nas ruas. Foi um protesto sobre o que lhe estava a acontecer ou solidariedade com as classes mais baixas? “Foram várias coisas, e na verdade uma coisa concreta [o aumento da tarifa]. Não é em solidariedade, porque nós somos do mesmo país. Eu sofro violência na rua porque tem gente sem educação e gente sem dinheiro. Eu tenho medo de pessoas que foram devoradas pelo crack porque não tiveram condições de ter uma vida melhor. Não penso que seja solidariedade, como se eu fosse boazinha. Eu entendo que é um país totalmente desequilibrado, mas esse todo faz parte de mim. Se a classe B e C estão bem, eu estou bem, estou mais segura, tenho boas concorrências na faculdade, a gente não precisava de pensar em políticas de cotas. Não é solidariedade só, é o justo.”

O grande diferencial de Junho foi a classe trabalhadora ter descoberto o caminho da rua

Tem 18 anos e acabou de entrar em Relações Internacionais na Universidade de São Paulo porque quer seguir Diplomacia, uma das formas de se estar na política. E política é o que quer fazer esta feminista, membro do Juntos, movimento nacional de jovens ligado ao PSOL (Partido Socialismo e Liberdade). “Só interferindo na política é que a gente consegue realmente fazer mudanças que duram”, acredita. “Você pode fazer uma manifestação hoje e [consegue que] o aumento da tarifa [caia], só que no ano que vem vai aumentar de novo”, diz, como que a colocar o discurso em modo pés na terra depois do entusiasmo de Junho. “A luta social pode mudar muita coisa. Todos os brasileiros aprenderam isso em Junho, por isso as manifestações estão ficando cada vez mais recorrentes. O próximo passo seria achar uma via política para essa indignação social.”

Encontramo-la perto do Museu de Arte de São Paulo, em plena Avenida Paulista, para onde convergiram várias manifestações. Ela leva-nos para a Praça Roosevelt, outro palco de manifestações. Há jovens com skates a treinar. Há polícia ao centro. Num dos muros do viaduto que delimita a praça desenha-se um graffiti com a palavra “vinagre” bem grande. Aqui esteve também a Marcha das Vadias, movimento global contra o machismo no qual ela participou, e que foi, segundo a leitura que faz, um dos que deram origem “à onda de levantes em Junho”. Cindy lembra que desde o início de 2013 que os protestos começaram a engrossar e a atingir um maior alcance nacional. “A Marcha das Vadias vem para dar uma oxigenada na luta feminista e eu quis fazer parte dessa nova oxigenação”, explica, sobre o seu envolvimento.

Cindy leva essa bandeira para a rua numa altura em que os sectores conservadores da sociedade brasileira, alguns ligados às igrejas evangélicas, e apoiados pelo Partido Social Cristão, têm feito pressão para restringir o direito ao aborto, que no Brasil só pode ser praticado em situações extremas, explica. Uma proposta de lei, o estatuto do nascituro, pretendia reduzir esse direito “a quase nada, você não podia nem tomar a pílula do dia seguinte, a pílula ia ser tornada ilegal, e a marcha das vadias ela vem nesse bojo de indignação contra uma lei que ia ser tão dura, tão restritiva contra os direitos das mulheres”. Cindy tem o discurso activista na ponta da língua: “A emancipação da mulher está muito conectada com o direito sobre o próprio corpo”, defende.

O mundo todo é machista, critica, e a América Latina e o Brasil em particular são-no bastante, mesmo tendo na presidência uma mulher — o que, na sua perspectiva, não alterou a forma de fazer política, nem a agenda. “É um factor importante, só que não adianta muito se não luta pelos direitos das mulheres. O PT já foi um partido que representava os interesses da população trabalhadora — as mulheres, os gays, os negros. Mas para poder chegar no poder tiveram que fazer concessões com alguns grupos muito conservadores, alguns grupos que restringem os direitos dos trabalhadores, que querem restringir os direitos das mulheres, dos homossexuais, e isso acabou sendo uma camisa-de-forças para Dilma agir também.” (Dilma foi acusada por sectores conservadores de defender o aborto durante a campanha para a presidência, e os ataques foram tais que declarou que não iria mexer na legislação durante os quatro anos de mandato.)

O interesse de Cindy Ishida no feminismo vem muito da sua história familiar. Tem um irmão transexual, que nasceu mulher e se está a transformar em homem. Desde novos tinham “esses choques em relação ao que era visto como feminino e masculino na sociedade”, conta. “Olhando a luta que meu irmão travava contra todos esses preconceitos que ele sofria, tentando se afirmar como género masculino, acho que deu muito gás para tentar lutar pelos meus direitos enquanto mulher”, analisa.

Cindy foi percebendo ao longo do tempo que o activismo era útil e que conseguia “muito mais coisas” em conjunto. No Brasil, há a especificidade de o machismo estar ligado à questão racial, acredita, fruto da herança da escravatura — a escrava era propriedade do senhor, o que reforça a construção de que a mulher é propriedade do homem, algo que até hoje se reflecte em épocas como o Carnaval, em que a mulher negra é hipersexualizada. De origem japonesa, Cindy não sente o mesmo preconceito — há até o mito contrário de as japonesas serem recatadas, diz. Sentiu foi preconceitos em relação a ser brasileira — e isso aconteceu no Porto, onde viveu durante a infância, em que um menino “falou na escola que todas as brasileiras eram putas”, tinha ela oito anos.

Apesar de ter estudado em escolas públicas a partir de determinada altura, considera-se classe média. E ter visto a classe média na rua foi muito importante, sublinha, para se perceber “o nível de violência praticada contra os jovens de um modo geral” — já não foram só os jovens da periferia nos seus bailes de funk a ser atacados pela polícia, agora também os filhos de uma classe média endinheirada sofreram repressão.

Numa das manifestações na praça onde estamos, ela não conseguia ver um palmo à frente dos olhos, tal era a quantidade de gás lacrimogéneo lançado pela polícia. Ficou encurralada com outros dois amigos, escondida, com medo. “Foi um marco para todo o mundo, foi a partir desse dia [13/06] que a luta se nacionalizou mesmo.”

Mas Cindy não acha que foi apenas a classe média que se levantou: a indignação atravessou classes. “Não dá para falar da classe média como um bloco”, sublinha. Parte dela, porém, foi importante num primeiro momento, sim, porque está envolvida com a luta política — está no Movimento Passe Livre (MPL, que desencadeou os protestos contra o aumento da tarifa de autocarro) e está a fazer a luta pelos trabalhadores, o que “é um problema, porque quem tem que fazer a luta pelo trabalhador é o próprio trabalhador”, afirma. “O grande diferencial de Junho foi a classe trabalhadora, foi quem mora na periferia ter descoberto o caminho da rua.”

A onda de protestos vem de um processo de “dique social que o PT armou para conter as manifestações”, considera. Sendo tradicionalmente o grande partido da esquerda que dirigia os movimentos de camponeses, dos sem-terra, e os sindicatos, o PT foi perdendo esse elemento agregador e foi também sendo tomado por escândalos de corrupção que o descredibilizaram, analisa.

Hoje, os políticos estão escutando o que as ruas falam, sabem que se não o fizerem terão um prejuízo eleitoral. As manifestações vão continuar, não duvida. E a repressão, sente, está a aumentar. Agora, um ano depois, em pleno Mundial de futebol, com todos os olhos postos no Brasil, como vai ser? “Muita gente acha que vai ter um grande levante na Copa. Eu acho que não, porque a polícia está muito mais bem preparada, o Governo está muito mais bem preparado.” Ou seja, os protestos também ensinaram novas tácticas ao Governo e às forças policiais. A pergunta agora será: como é que as ruas os vão fintar?     

 


Sugerir correcção
Comentar