Je suis coxinha

1. Prometiam ser um milhão na Avenida Paulista, e eu estava em São Paulo, então fui lá. Queria ver esse milhão contra a corrupção, dando um fora a Dilma, Lula, PT, petralhas, esquerdalhas. O taxista que me apanhou tinha o rádio na CBN, notícias para seguir os esperáveis engarrafamentos, mas durante todo o caminho mal engarrafámos, e à vista da avenida começou a ficar na cara que não seria nem um quarto de milhão, visto que deu para quase desembarcar em cima da manifestação. Depois, andando pela Paulista, mais claro ainda, mesmo com uma larguíssima faixa central tomada pelas obras da ciclovia, os patriotas não conseguiam lotar as laterais, nada de encontrões, amassos ou sufocos, tudo ali fluindo por entre clareiras, daria até para sprintar no meio da multidão branca, vestida de bandeira nacional. Nunca tinha visto uma multidão brasileira tão homogénea. Mais que branca, pálida.

2. Está bem que São Paulo não é aquela praia de todo o ano, mas mesmo em São Paulo em qualquer Outono-Inverno nunca tinha visto tanta cara-pálida contígua. Era uma verdadeira manif dos caras-pálidas do Brasil, com a ligeira transpiração de quem só respira no ar condicionado. Uma transpiração que é mais medo do que suor quando se vê sozinha.

3. O cartaz “Pelo resgate dos valores éticos e morais” cruzava-se com os cartazes “Dilma e Lula para CUba” e “Lula perdeu o dedo no cu dos brasileiros”, comprovando a milenar atracção entre moral e obscenidade. “Nossa bandeira jamais será vermelha”, jurava outro, no peito de um torcedor de futebol. O ambiente geral, aliás, era de derby, com apitos, vuvuzelas e até o lema “Muito pior que 7 da Alemanha são 8 anos de Dilma”, rabiscado por um adepto de bandeira enrolada na cabeça que ria como Carmen Miranda. Uma banca de moças recolhia assinaturas pelo “Impeachment já”; indignadas de madeixas bradavam “Fora Dilma” em cima de carros de som; e não faltavam balzaquianas contra a corrupção empunhando cães de raça. Uma família trazia nada menos do que dois formidáveis golden retrivers com cartazes no lombo a dizer “Lula, chega de roubar minha ração”. Problemas sérios, num país onde, de resto, está tudo bem.

4. Na manhã seguinte, a Folha de S. Paulo, insuspeita de favorecer Dilma, confirmava as clareiras: 100 mil onde se esperava um milhão, ou seja, metade dos que tinham saído à rua a 15 de Março, ou seja, os indignados pelo impeachment perdiam gás. Um colunista dava uma pista: ainda é gente mais movida pelo fígado (ódio ao PT) do que pelo estômago (desemprego, fome). E o perfil do manifestante, que a Folha publicava na capa, reforçava: quem estava na Paulista contra a corrupção, contra Dilma, contra o PT e vermelhos em geral tem ensino superior (77%) e é branco (73%). Impossível não lembrar que 77% das mortes violentas no Brasil são jovens negros. São duas formas possíveis de retratar o Brasil: a) mais de dois terços dos manifestantes anti-Dilma são brancos e têm ensino superior b) mais de dois terços das mortes violentas no Brasil são jovens e negras.

5. Foi nessa capa da Folha que vi o cartaz “Je suis coxinha”, lá na Paulista. Um dos muitos que terei perdido porque não perdi a tarde inteira a andar na Paulista. Quando fui morar no Rio de Janeiro, em 2010, coxinha ainda era só aquele salgado de frango que não falta em qualquer lanchonete, mas nos últimos tempos ganhou outro significado, sobretudo a partir de São Paulo, substituindo até os clássicos mauricinho e patricinha, equivalente brasileiro de beto, embora nos coxinhas pareça haver uma ostentação mais específica dos novo-ricos, aspirantes a betos.

6. Pedi então a alguns “correspondentes” no Brasil que me enviassem definições de coxinha, para uma antologia-relâmpago. A primeira, de uma amiga mineira, foi que eu olhasse a cara do Aécio Neves: o melhor retrato de coxinha (no perfil destes manifestantes publicado pela Folha, aliás, nada menos do que 83% votaram no mineiro Aécio). Um amigo português que mora em São Paulo há anos resumiu coxinha como aquele que, justamente, não come coxinhas. E um paulistano da gema detalhou: “Coxinha veste camisa polo com brasão de casa real europeia dois números menor pra parecer mais forte mas só acaba destacando sua própria pancinha; gosta de ir a um barzinho descolado pra ficar tirando selfie com a namorada e o prato de comida; seu sonho é ter uma SUV branca e fazer SUP nas Maldivas (o pau de selfie na bagagem); coxinha usa perfume caro e forte pra todo mundo saber que ele é limpo; coxinha sonha com um mundo empanado, crocante, cremoso e pago por um preço menor do que aquele que o amigo coxinha pagou — de preferência, sem nota fiscal.” A tudo isto um amigo, gaúcho de gema mas morador em São Paulo, juntou um vídeo com a imagem viva e em movimento do coxinha alardeando carro, cartão e Instagram para exibir o resto. E porque nada é sempre só isso, um blogueiro-filósofo complicou: “‘Coxinha’ é a palavra que tem sido usada para substituir os antigos ‘mauricinho’ ou ‘playboy’ por pessoas que se consideram de esquerda; acontece que uma proporção enorme dessas pessoas, hoje, se encaixaria perfeitamente na descrição de um ‘mauricinho’ ou ‘playboy’: consumista, orgulhoso do carrão, usando roupas desnecessariamente caras, relógios importados, se esbaldando em vinhos DOC e whisky com idade para dirigir e assim por diante. Toda a questão gira em torno disso: depois que a esquerda passou a se comportar como direita, como marcar a diferença com aqueles que ainda são efetivamente de direita, defendendo idéias de livre-mercado e assim por diante?”

7. A própria da manif esteve bastante para mercado livre, onde quem pode facturou, e nem estou a pensar nos vendedores de apitos, vuvuzelas, camisetas, águas, que estavam ali como em qualquer multidão, seja Roberto Carlos em Copacabana ou Fla-Flu no Maracanã. Não: revelada a 15 de Março, uma indignada semidescascada conseguiu um contrato para revista de mulher pelada, e na sua senda outras mostraram o fruto de muito suor, muito implante. Aquilo a que nos anos 2000 da coxinha podemos chamar empreendedoras.

8. Mas para quem quiser mais, já tem até dicionário de coxês-português: http://coxesportugues.tumblr.com/

Foto
NELSON ALMEIDA/AFP

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