Já é oficial: a Europa não resiste a um tiro no pé

Merkel oficializou a candidatura de Kristalina Georgieva, quando já se conhecia uma inclinação muito forte do Conselho de Segurança para a escolha de Guterres. Terá em algum momento acreditado que a sua intervenção teria sucesso?

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1. Angela Merkel não é a madrasta da Branca de Neve, nem se imagina que olhe para o espelho e pergunte se há alguém mais poderoso que ela. Não tinha, do ponto de vista político, nada contra António Guterres com quem se encontrou frequentemente para debater a questão dos refugiados. Foi das poucas vozes que apoiaram abertamente a coragem da chanceler ao aceitar receber um número incalculável de refugiados das guerras na Síria e no Iraque. A questão só pode ser a forma de exercer a sua hegemonia, na qual a Alemanha está visivelmente desactualizada.

Merkel oficializou a candidatura de Kristalina Georgieva tarde e a más horas, quando já se conhecia uma inclinação muito forte do Conselho de Segurança para a escolha de Guterres. Terá em algum momento acreditado que a sua intervenção teria sucesso? É quase inconcebível admitir que sim. “A chanceler foi certamente muito mal informada”, diz uma fonte diplomática portuguesa. Porquê tanto amadorismo? Ou, então, tanta arrogância? Houve cálculos que saíram errados à chanceler como, por exemplo, as intenções de Moscovo. Putin tinha uma candidata (Irina Bokova) mas deixou claro desde o início do processo que, em alternativa, apoiaria o candidato português. O primeiro objectivo de Putin é manter a Europa dividida. A face de Gregorieva lembrava demasiado as sanções aplicadas pela União Europeia e pelos EUA à Rússia na sequência da crise ucraniana, para merecer grande simpatia. Merkel nem sequer se terá dado ao trabalho de auscultar a opinião de Washington, apesar da boa relação com Obama. Os Estados Unidos, depois de um breve do “momento” argentino e feminino, protagonizado de Samantha Power e Susan Rice, respectivamente embaixadora na ONU e Conselheira Nacional de Segurança de Obama, também não tinham objecções a Guterres, bem conhecido da diplomacia americana do tempo em que foi primeiro-ministro e manteve uma forte ligação com Bill Clinton, a quem conseguiu convencer, contra a opinião generalizada dos seus conselheiros, a fazer avançar os seus navios para as águas de Timor Leste, quando os indonésios entraram para matar. Guterres sempre foi visto como um político moderado e atlantista, que convidou o Partido Democrata a integrar a Internacional Socialista na altura em que liderou a instituição.

Depois, havia ainda os outros 10 membros não permanentes do CS, que Merkel também não parece ter levado em conta. “Entre eles, ninguém estava disposto a fazer o papel de verbo-de-encher, depois de terem iniciado um processo mais aberto” em que o seu voto contava. De resto, esta não era a batalha da China. A França nunca tergiversou, provando mais uma vez que o eixo franco-alemão está paralisado. Os velhos tiques imperiais da diplomacia britânica (agora acentuados com a perspectiva do Brexit), tornam-na sempre um enigma. O Foreign Office não abriu o jogo até ao fim.

2. O que quer tudo isto dizer? Federica Mogherini apresentou aos líderes europeus em Setembro uma nova estratégia de segurança e defesa europeia, que substituirá a que foi adoptada em 2003, por iniciativa de Javier Solana, o espanhol que presidiou à NATO e, depois, estreou as funções de Alto representante da política externa e de defesa da União. Nessa altura, o documento tentava tirar as conclusões do 11 de Setembro e das guerras dos Balcãs, mas deixava ainda um enorme vazio politico por trás da retórica. Em 2010, o Instituto de Estudos de Segurança da U.E., liderado pelo português Álvaro Vasconcelos, preparou uma revisão do documento, mas ninguém queria sequer ouvir falar de um debate que se sabia incómodo. Ficou na gaveta. A proposta de Mogherine padece dos mesmos males porque as divisões permanecem. Se a Europa não se consegue entender sobre o candidato a liderar a ONU, também não se conseguirá entender sobre o seu papel e o seu lugar no mundo. Se faltava uma prova, ela aqui está.

Voltando ao ponto de partida, é legítimo perguntar se Berlim entrou em deriva ou se foi apenas um incidente lamentável. Faz sentido que, depois da unificação alemã e da unificação europeia, Berlim regresse ao seu velho espaço de influência, em disputa com a Rússia, que marcou a sua história e a da Europa? Ainda há muitos espaços em branco para compreender para onde quer ir a chanceler. A candidatura de Guterres conseguiu o impossível: unir Washington e Moscovo numa altura em que a tensão entre ambos atinge o seu ponto máximo. A Europa consegue dar tiros no pé mesmo quando nem sequer seria necessário sacar da pistola.

3. Falta apenas uma palavra para Juncker, que perdeu toda a autoridade sobre os seus comissários e que tem a hostilidade de Berlim. A operação Georgieva foi lançada pelo seu chefe de gabinete, um alemão com ligação directa à chancelaria alemã. Tentou cavalgar a onda. Envolveu-se demasiado numa operação que não poderia ter apoiado. Bruxelas está em saldo e essa é também uma péssima notícia. 

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