"Isto é bom para nós?"

Como judia, é-me indiferente que o genro de Donald Trump seja judeu e a filha convertida: são os seus actos que contam e as diatribes com as quais ganhou as eleições.

Es bueno esto para nosotros? Perguntavam-se os judeus sefarditas do Egipto, no dia 23 de Julho de 1952, no seguimento do golpe de Estado que derrubou o rei Farouk. Isto é bom para nós? Esta pergunta feita através dos séculos pelos judeus, maneira indirecta de questionar “até que ponto é mau para nós”, exprimia a inquietação e angústia perante acontecimentos cujas consequências se podiam transformar em verdadeiras catástrofes.

Esta será eventualmente a mesma pergunta que se farão os judeus dos EUA depois da eleição de Donald Trump. Esta é certamente a pergunta que se colocam muitos judeus pelo mundo fora e esta é a pergunta que muita gente em Israel certamente se coloca.

É claro que o mundo judaico é muito heterógeno e diversificado e ainda bem que assim é: nos EUA embora a maioria seja liberal e vote tradicionalmente nos democratas, há certamente numerosos judeus republicanos e outros que sendo uma ou outra coisa pensam também nas mudanças em função das consequências para Israel. Ou seja, e colocando as coisas de outra maneira, haverá poucos judeus que para além das suas convicções pessoais politicas e ideológicas não se preocupem com o impacto desta eleição em Israel.

Pessoalmente, para mim, uma coisa é clara: como ser humano e mulher, como judia e intimamente ligada ao destino de Israel, Trump é o “amigo” que eu não quero ter. Em primeiro lugar, porque não posso ignorar o discurso racista, xenófobo e misógino que marcou a sua campanha. Mesmo que como Presidente não faça um terço das ameaças que brandiu, basta tê-las afirmado.

Porque quando ataca as minorias como um todo, os muçulmanos ou os “latinos” no seu todo, ou as mulheres no seu todo, Trump liberta e de alguma forma legitima, não só os instintos mais primários do ser humano, mas as teses do bode expiatório cujas consequências trágicas falam por si. E não tenhamos ilusões, o discurso nacionalista, de ódio e ressentimento também acabará por libertar o anti-semitismo latente em vastos sectores da sociedade americana.

Como judia, é-me indiferente que o genro de Donald Trump seja judeu e a filha convertida: são os seus actos que contam e as diatribes com as quais ganhou as eleições. E a palavra dita tem muita força, ela própria pode criar uma realidade ou espoletá-la: com a abertura da caixa de pandora, os demónios saltam todos cá para fora. Os milhões de pessoas que votaram nele, incluindo de forma inconcebível uma grande percentagem de mulheres, não tiveram coragem de se manifestar durante a campanha, por isso ficámos todos em estado de “espanto e choque”. Mas uma vez Trump eleito, a criatura poderá escapar ao seu criador…

Para o bem e para o mal, os EUA têm estado sempre um passo à frente, têm sido de alguma forma o laboratório da inovação em quase todos os campos da actividade humana. Desde a revolução americana no século XVIII até hoje, o impacto das suas políticas globais ou das suas realizações nas ciências, cultura ou artes, é imenso, ultrapassando largamente a suas fronteiras.

O mundo tem consciência disso, de alguma forma todos “votámos” nestas eleições. Como primeira potência mundial que ainda é, tudo o que se passa nos EUA tem um eco evidente a nível mundial e a eleição de Trump repercutir-se-á nas franjas extremistas, populistas e de extrema-direita a nível europeu como rapidamente o constatámos em França com o aplauso entusiasta de Marine Le Pen. Mais do que a própria eleição em si mesma, é isso que é preocupante.

Para Israel, é cedo para afirmar o que quer que seja, dado que Trump é imprevisível não só nas suas políticas internas mas externas. Provavelmente, e apesar das suas palavras, não mudará profundamente a política que tem sido seguida. Mas não partilho do júbilo dos sectores mais extremistas do governo de Israel e fora dele. Pessoalmente, não me tranquiliza. E nunca é demais lembrar que a resolução do conflito israelo-palestiniano será feita pelos próprios ou não será. E nesse sentido o que é decisivo é vontade política, interlocutores fiáveis e um quadro regional propício. Tenho as maiores dúvidas que o recém-eleito presidente americano possa contribuir nesse sentido.

Pode ser que eu me engane. Pode ser que Trump se rodeie de bons conselheiros ou que se demita, ou que por milagre venha a ser o melhor presidente que os EUA já tiveram. Mas como não acredito em milagres, a minha resposta à pergunta inicial é “Não, isto não é bom para nós”….

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