Impeachment contra Dilma não vai ser tão rápido como o de Collor

Ausência de consenso político e de uma oposição organizada poderão dar algum oxigénio a Dilma. O clima de guerra está instaurado em Brasília

Foto
Dilma vai recorrer ao Supremo Tribunal Federal para tentar travar o processo de impeachment Ueslei Marcelino /reuters

A abertura de um processo de impeachment contra a Presidente Dilma Rousseff na quarta-feira à noite pôs fim ao bluff que se arrastava há meses e instala um novo clima de incerteza no Brasil, que se confronta com a pior recessão económica das últimas duas décadas e com o maior escândalo de corrupção da sua história. O clima de guerra está instaurado em Brasília, a capital política do país. A partir de agora, o duelo será ao sol: foi assim que Jaques Wagner, o mais importante ministro do Governo, reagiu à decisão do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha – arqui-inimigo de Dilma, apesar de o seu partido, o PMDB, fazer parte da coligação governativa – de autorizar o pedido de destituição contra a Presidente. “A bala que estava guardada foi disparada. Vai ser tudo às claras. Agora, é ele [Cunha] e ela [Dilma]”, disse o ministro numa entrevista.

A decisão de Cunha foi uma surpresa, até porque o pedido de impeachment, assinado por três juristas, tinha sido entregue no Congresso em meados de Outubro e o presidente da Câmara dos Deputados – o único com autoridade para aceitar ou arquivar pedidos dessa natureza – não tinha sinalizado qualquer pressa em iniciar o processo. Pelo contrário. Com o seu próprio mandato em perigo por causa das suspeitas de que terá recebido subornos relacionados com o esquema de corrupção no interior da companhia estatal Petrobrás e com a revelação de que possui contas milionárias e secretas na Suíça, Cunha parecia estar a guardar o pedido de impeachment como moeda de troca com o Governo para poder salvar o seu próprio cargo. Isso durou até quarta-feira, dia em que Cunha soube que não iria contar com o apoio do partido do governo, o Partido dos Trabalhadores (PT), para travar o processo de investigação que poderá resultar no seu afastamento da Câmara dos Deputados.

O PT e o governo, entretanto, prometeram combater o processo de impeachment em várias frentes. Dilma reuniu-se no Palácio do Planalto com os seus principais ministros para discutir estratégias de defesa. Brasília assistiu a uma sequência de conferências de imprensa que serviram sobretudo para trocar acusações. Cunha afirmou que Dilma mentiu “à nação” na sua declaração de quarta-feira à noite, quando disse que jamais “aceitaria ou concordaria” com qualquer negociação de votos do PT em troca do arquivamento do impeachment (“A barganha [negociação] veio, sim, proposta pelo Governo, e eu me recusei a aceitar”, disse Cunha). Em seguida foi a vez de Jaques Wagner acusar Cunha de mentir. O ministro disse que o facto de Cunha ter autorizado o processo de destituição tem a vantagem de pôr fim às “chantagens” do presidente da Câmara dos Deputados, que, segundo ele, perdeu a legitimidade para continuar no seu cargo. É a mais incisiva condenação de Cunha vinda do Governo desde que o seu nome ficou envolvido em suspeitas de corrupção e evasão fiscal.

O PT prometeu recorrer ao Supremo Tribunal Federal para tentar travar o processo de impeachment. Uma das teses que o partido pretende apresentar é a de que Cunha terá usado indevidamente a sua autoridade ao aceitar o pedido de impeachment motivado por razões pessoais (um acto de retaliação contra a perda de apoio do PT na câmara baixa do Congresso) e não em nome do interesse público.

A decisão de Cunha de acolher o pedido de impeachment – um dos 28 pedidos apresentados este ano contra a Presidente, a maioria sem sustentação técnica ou jurídica – é apenas o pontapé de saída de um processo que poderá demorar meses. Até segunda-feira, deverá ser constituída a comissão especial de deputados, com representantes de todos os partidos com assento parlamentar, que irá examinar o pedido de impeachment. Instalada a comissão, Dilma dispõe de dez sessões na Câmara dos Deputados para apresentar a sua defesa. Se a comissão parlamentar aceitar o pedido de impeachment, o seu parecer segue depois para votação em plenário, sendo necessários dois terços, ou 342 votos, para ser aprovado. Dilma, por seu lado, precisa de 172 votos para anular o pedido de impeachment.

O processo não vai ser tão rápido como foi no caso de Collor, que se iniciou e concluiu no mesmo mês, segundo o sociólogo Brasílio Sallum Jr., da Universidade de S. Paulo, que este ano publicou um livro sobre o impeachment de Fernando Collor de Mello, em 1992. “Havia um consenso social e político muito grande sobre o afastamento do Presidente. Ele não tinha muitos recursos parlamentares para resistir. Hoje é diferente. Dilma tem uma rejeição em termos de opinião pública muito maior do que Collor, mas do ponto de vista político, parlamentar e mesmo social, ela tem mais condições para resistir”, diz ao PÚBLICO. “Se a votação fosse hoje, ela conseguiria escapar. Mas isso não quer dizer que daqui a mês a gente não perceba as coisas de forma diferente.”

Este especialista acredita que o processo de impeachment se vai prolongar até ao próximo ano. “Para a oposição, até é bom que seja para o ano que vem, porque dá tempo de formar mobilização nas ruas, o que pode ser importante para pressionar o voto parlamentar contra Dilma”, conclui.

As pedaladas fiscais

Entre os principais argumentos que sustentam o pedido de impeachment acolhido por Eduardo Cunha na quarta-feira estão as chamadas “pedaladas fiscais” alegadamente cometidas nos dois governos de Dilma Rousseff, uma manobra que consiste no uso indevido de fundos bancários para ultrapassar metas orçamentais e mascarar as contas públicas. A prática foi condenada em Outubro pelo Tribunal de Contas da União, órgão que fiscaliza as contas públicas. 

Os autores do pedido de impeachment – os juristas Hélio Bicudo, ex-militante do PT que se afastou do partido, Miguel Reale Jr., ex-ministro da Justiça de Fernando Henrique Cardoso, e Janaína Paschoal, professora de Direito na Universidade de S. Paulo – tinham apresentado uma versão anterior, sustentada com as pedaladas fiscais cometidas em 2014. Mas numa tentativa de ultrapassar o impasse jurídico sobre a validade desse pedido, dado que as irregularidades apontadas diziam respeito ao anterior mandato de Dilma, Eduardo Cunha aconselhou os autores a reformularem a sua argumentação com a tese de que as pedaladas fiscais continuaram em 2015.

Em concreto, as “pedaladas fiscais” referem-se ao atraso do Governo no pagamento aos bancos de montantes relacionados com benefícios e subsídios sociais – como o Bolsa Família. A retenção desse pagamento – calculado em cerca de 10 bilhões de euros no ano de 2014 – permitiu ao Governo equilibrar artificialmente as suas contas, apresentando despesas menores do que as que realmente tinha. 

Sugerir correcção
Ler 9 comentários