Homofóbico e terrorista

Orlando foi um atentado homofóbico – e convém escrevê-lo no maior corpo de letra possível.

Há gente que parece sentir necessidade de escolher entre o massacre de Orlando ter sido um atentado homofóbico ou ter sido um atentado terrorista. Pergunto: há alguma razão para que não possa ter sido as duas coisas? Quem defende, em primeiro lugar, que foram assassinados seres humanos – e não seres humanos homossexuais – até pode estar bem-intencionado e querer dizer com essas palavras que a humanidade está acima da opção sexual de cada um. É verdade. Contudo, é uma escolha de palavras perigosa, porque corre o risco de passar uma esponja por cima daquilo que é o fundamentalismo islâmico, e até mesmo algum islamismo não tão fundamentalista assim. Neste caso específico, sim, aquelas pessoas foram mortas por serem homossexuais (ou, não sendo homossexuais, por estarem a frequentar um bar LGBT). E sim, os estados islâmicos são um terror para a comunidade gay, sem sequer ser preciso chegar ao Daesh.

A maior parte dos jornais do mundo ocidental optaram por deixar a palavra “gay” de fora dos títulos, colocando-a apenas no pós-título. Foi o caso do Guardian, do USA Today e do Boston Globe (“Massacre in the night”), do The Times e do Wall Street Journal (“A night of terror in Orlando”), do Chicago Tribune e do LA Times (“An act of terror and act of hate”), do Libération, do Le Figaro e do Le Monde (“Orlando, le deuil et la colère”), do ABC, do La Vanguardia e do El País (“El Estado Islámico se atribue el mayor ataque em EE UU desde el 11-S”), do La Stampa (“Attacco all’America nel nome dell’Isis”) ou do próprio PÚBLICO (“Ataque de ‘terror e ódio’ em Orlando foi o pior da História dos EUA”). É demasiada coincidência para ser apenas uma escolha acidental, quando qualquer um de nós, se tivesse de resumir o acontecimento numa frase, diria simplesmente: “Um terrorista assassinou 50 pessoas num bar gay americano.” A palavra “gay” estaria sempre lá.

Houve, portanto, uma intenção clara de colocar o terrorismo acima da homofobia, e era isso que fazia o próprio editorial deste jornal, propondo superar a “visão estritamente homofóbica” divulgada pelo pai do atirador. “Com apoio do terrorismo islâmico ou sem ele”, escreveu o PÚBLICO, “a verdade é que o atirador de Orlando foi movido pelo ódio à diferença e pelo ódio à liberdade. Ora, é preciso não ceder um milímetro no combate para defendê-las.” Sem dúvida que é preciso não ceder um milímetro nesse combate, e sem dúvida que um fundamentalista islâmico não precisa especificamente de matar gays para se sentir consolado – qualquer pessoa serve, incluindo muçulmanos. Mas se há situação em que faz sentido recorrer à palavra “homofobia”, e utilizá-la e reutilizá-la, até ficar gasta de tanto uso, é aqui.

Quando o pai de Omar Mateen vem para a televisão criticar o filho, afirmando ao mesmo tempo que compete a Deus castigar os homossexuais, não há forma de colocar o terrorismo acima da homofobia. Algumas vezes critiquei a comunidade LGBT portuguesa por perder a perspectiva daquilo que deveria ser o essencial do seu combate, vendo sombras homofóbicas onde elas não existiam – recordo, por exemplo, o debate em torno da doação de sangue por gays, uma questão científica que estava a ser discutida em termos absurdos. Mas aqui não se tratam de sombras. Este é o combate sério, fundamental e irrecusável, pelo direito à diferença e à autodeterminação sexual de cada um. Orlando foi um atentado homofóbico – e convém escrevê-lo no maior corpo de letra possível.

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