Homenagem a Mary Churchill Soames

O facto de ser filha do primeiro-ministro não a impediu de, com apenas 18 anos, ter sido uma das primeiras mulheres a integrar as forças militares britânicas na frente de batalha.

A notícia da detenção para interrogatório do ex-primeiro-ministro José Sócrates — à chegada ao Aeroporto de Lisboa, com pré-aviso à imprensa — atingiu-me com estupefacção em Londres. Por mais poderosas que sejam as razões — e muito poderosas terão de ser —, é difícil compreender tamanha exibição de força e publicidade num Estado de direito democrático. Mais preocupantes ainda têm sido as incendiárias reacções, a favor e contra, na chamada “blogosfera” — um estabelecimento que frequento apenas moderadamente.

Ao contrário dessa atmosfera revolucionária, o evento que me trouxe a Londres terá sido tudo menos revolucionário: a homenagem a Lady (Mary Churchill) Soames, filha mais nova de Winston Churchill, que morreu com 91 anos no dia 31 de Maio.

A cerimónia teve lugar na Abadia de Westminster, na quinta-feira, pelas 12h, com cerca de um milhar de pessoas — todas previamente inscritas e credenciadas, bem como submetidas a controlo de metais à entrada. Apesar da envergadura logística, tudo decorreu com a habitual tranquilidade britânica: sem surpresas, nem entusiasmos, nem ruídos de telemóvel ou outros intrusivos instrumentos modernos, incluindo câmaras de televisão.

Às 11h30, as pessoas tinham ocupado os seus lugares. Começaram a chegar os convidados oficiais, encabeçados pela embaixadora de França, onde Mary Soames tinha sido embaixatriz e a cuja Legião de Honra pertencia. Às 11h55, entrou o príncipe de Gales, em representação da Rainha e do duque de Edimburgo, acompanhado pela duquesa de Cornwall. Às 12h em ponto, o coro de Westminster deu início à cerimónia. Às 13h em ponto, os sinos de Westminster tocaram a rebate. A cerimónia terminara.

Mary Churchill Soames nasceu em 1922, a fillha mais nova de Winston e Clementine Churchill. O facto de ser filha do primeiro-ministro não a impediu de, com apenas 18 anos, ter sido uma das primeiras mulheres a integrar as forças militares britânicas na frente de batalha. Serviu em várias baterias antiaéreas, designadamente no Hyde Park de Londres, onde escapou por um triz a um bombardeamento nazi. Participou nas forças do D-Day e desempenhou missões em Bruxelas e Hamburgo. Recebeu várias condecorações por coragem em combate e acompanhou o pai em vários encontros marcantes — com Roosevelt e Staline, entre outros.

Mary casou-se em 1947 com o capitão Christopher Soames, mais tarde deputado conservador, embaixador britânico em Paris, comissário europeu em Bruxelas e último governador da Rodésia. Depois da morte do marido, em 1987, Mary prosseguiu activa participação em associações voluntárias de intervenção cívica.

Foi presidente do conselho de administração do Winston Churchill Memorial Trust entre 1991 e 2002. Totalmente baseado em donativos privados, este fundo foi criado em 1965 — ano da morte de Churchill — para oferecer bolsas de estudo a cidadãos britânicos que quisessem estudar ou investigar no estrangeiro, na condição de depois regressarem ao país. Desde 1965, foram atribuídas 4950 bolsas Winston Churchill, estando previstas mais 50 para o próximo ano — no cinquentenário da morte de Churchill.

Mary Soames era também a “Patron” da International Churchill Society/Churchill Centre, outra instituição puramente privada dedicada ao estudo e à divulgação da figura e da obra de Winston Churchill. Foi aí que a conheci, nas iniciativas da Churchill Society, a que quase sempre presidia. Era uma presença encantadora, despretensiosa, bem humorada, mas com opiniões fortes sobre muitos temas políticos — sobretudo se tivessem alguma relação, ainda que remota, com os seus pais.

Mary Soames escreveu, aliás, uma excelente biografia de sua mãe, Clementine Churchill, que obteve em 1979 o Wolfson Prize for History. Entre vários outros livros, destaca-se em 1990 Winston Churchill: His Life as a Painter, e, em 1998, Speaking for Themselves — uma impressionante colecção de cartas entre Winston e Clementine Churchill. Finalmente, um livro absolutamente incontornável é o de 2011: A Daughter’s Tale: the Memoir of Winston Churchill’s Youngest Daughter.

Mary Soames representava o melhor de uma velha tradição britânica que muitos receiam ter caído em desuso: o espírito patriótico de dever e serviço, exercido graciosamente, discretamente, apenas para servir a causa da liberdade ordeira sob a lei. Essa foi sem dúvida a tradição que celebrámos na quinta-feira, na Abadia de Westminster. Sem publicidade, sem televisão, sem fotos para “facebooks” e outras substâncias tóxicas da presente era das celebridades mediáticas.

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