Hollande, o Presidente das promessas por cumprir, deixa a esquerda em cacos

Eleito com um programa esquerda, François Hollande governou à direita na economia e na segurança. Os seus eleitores sentiram-se traídos. Desistir de se recandidatar é a consequência da política que seguiu.

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“O que me espanta é que ele [o Presidente] não expressou nenhum remorso", disse o economista Thomas Piketty IAN LANGSDON/AFP

François Hollande quis ser o “Presidente normal”, mas deixou a impressão de ser um homem que nunca conseguiu habitar adequadamente a função. “Deixa a cena tal como a ocupou: a gravata de lado, flutuando num fato demasiado grande”, escreveu no editorial do Le Figaro Alexis Brézet, director das redacções deste jornal de direita.

A avaliação pode ser injusta – outros editorialistas fazem uma avaliação mais positiva do discurso em que Hollande anunciou que abdica de lutar por um segundo mandato nas presidenciais da Primavera de 2017, dizendo-se “consciente dos riscos de tal acto”. “Não posso dispersar a esquerda, contribuir para a fracturar”, afirmou, numa curta comunicação a partir do Palácio do Eliseu, a que assistiram 14,2 milhões de telespectadores.

Mas uma das coisas que se pode dizer do mandato do Presidente eleito em 2012 após uma campanha em que dizia “não gosto dos ricos!” é que dividiu e desmoralizou a esquerda. As promessas de campanha, feitas à esquerda, transformaram-se numa política económica que não jogou nesse campo. Hollande foi o Presidente das promessas não cumpridas.

A eleição de Hollande foi vista pela esquerda europeia como uma lufada de ar fresco contra os pesados ventos da austeridade que sopravam de Bruxelas e Berlim, em resultado da crise do euro, que vinha no encalço da grave crise financeira que se abateu sobre os mercados em 2008. “A austeridade não deve ser uma fatalidade”, declarou no seu primeiro discurso como Presidente eleito.”

Mas o novo Presidente francês, que teve de sossegar Washington, preocupado por ver de novo um socialista – palavra perigosa do outro lado do Atlântico – no Palácio do Eliseu, cedo percebeu que não conseguiria o tratado europeu de Dezembro de 2001, que institui a regra de ouro dos orçamentos europeus – o défice estrutural não pode ser superior a 0,5% do PIB nos países cuja dívida pública não esteja 60% abaixo do valor do PIB.

O tratado foi ratificado pela maioria socialista no Parlamento de Paris, e a política de crescimento que defendia durante a campanha, enchendo o coração das várias esquerdas europeias, foi substituída por uma política que seguiu as linhas da austeridade impostas nos restantes países da União Europeia.

“O que me espanta é que ele [o Presidente] não expressou nenhum remorso, nem sobre a Europa nem sobre a austeridade. Em 2012-2014, Hollande adoptou uma estratégia de redução dos défices em marcha forçada que matou o crescimento. Os resultados acabaram por se revelar timidamente em 2015-2016, mas esta escolha inaugural tornou-se um peso sobre o seu mandato e esta política fez com que o nível de actividade económica na zona euro regredisse aos valores de 2007”, afirmou o economista Thomas Piketty ao Le Monde.

“Isto é responsabilidade François Hollande, mas também de Nicolas Sarkozy, de Angela Merkel, em suma de todos os que puseram em prática do tratado orçamental europeu. Continuar hoje a ter este discurso de auto-satisfação sobre a política europeia e orçamental é quase indecente.”

A aprovação de um novo Código do Trabalho, que diminui os direitos dos trabalhadores nas empresas, facilita despedimentos e institui contratações precárias – que deu origem a grandes manifestações na Primavera passada, organizadas pelos sindicatos, que por vezes se tornaram violentas – ajudou a cimentar a ideia de um Governo socialista cuja acção não é de esquerda.

O fantasma do desemprego

Uma promessa que assombrou François Hollande desde o início foi a que fez a 9 de Setembro de 2012: “Inverter a curva do desemprego dentro de um ano”, ainda que na altura, diz o Le Monde, só o ministro do Trabalho, o seu amigo de juventude Michel Sapin, julgasse que tal seria possível. Não só não cumpriu o prometido, como continuou a insistir nesta tecla: em Abril de 2014, fez nova promessa: “Se o desemprego não baixar, até 2017, não haverá motivos para me recandidatar, nem terei hipóteses de ser reeleito”, concluiu.

Os números do desemprego dos últimos dois meses começaram a baixar – registaram o maior recuo desde 2008, mesmo entre os jovens. Hollande mencionou-o no seu discurso de renúncia: “O maior compromisso que assumi perante vós, foi de fazer baixar o desemprego. Consagrei-lhe, com o Governo, toda a minha energia. Aligeirei os impostos das empresas porque essa é uma condição para que criem empregos. Os resultados estão a chegar, um pouco mais tarde do que tinha anunciado, concedo, mas estão a chegar.”

Os trabalhadores, os sindicatos, e muitos eleitores que votaram Hollande e Partido Socialista em 2012, no entanto, não aceitam este discurso. Recordam a grande viragem anunciada no fim de 2013 – o “Pacto de Responsabilidade” que permitiu aliviar em cerca de 40 mil milhões de euros a carga fiscal das empresas, fragilizadas pela perda de competitividade internacional e pela crise financeira de 2008.

A ideia era que isto facilitasse as contratações, e desta forma combater o desemprego. Mas o que ficou na memória eram relatos de aproximações entre o Palácio do Eliseu e Pierre Gattaz, o líder da associação dos patrões da indústria. As eleições municipais de Março de 2014 marcaram uma grande derrota para o PS, e a Frente Nacional, de extrema-direita, conquista 14 cidades – algo inédito na V República (desde o fim da II Guerra).

Terror e segurança

É na sequência desta derrota eleitoral que Hollande operou uma remodelação governamental: em Abril de 2014, saiu o primeiro-ministro Jean-Marc Ayrault, substituído pelo então popular ministro do Interior Manuel Valls. Hollande, fazendo cálculos já para a sua reeleição, esperava beneficiar da popularidade de Valls – e, ao mesmo tempo, controlar um ambicioso concorrente para o Eliseu, que tinha sido um dos competidores nas primárias socialistas que Hollande tinha sido escolhido como candidato do PS em 2012.

Mas os anos que se seguiram foram os que transformaram Paris numa cidade vítima do terrorismo. Em Janeiro de 2015, o ataque ao semanário satírico Charlie Hebdo e a um supermercado judaico, por uma pequena célula ligada à Al-Qaeda, e em Novembro desse ano, os atentados de grande dimensão cometidos um grupo do Estado Islâmico, organizado a partir da Bélgica.

Se em Janeiro houve um grande sentimento de união nacional, e uma subida da popularidade de François Hollande, em Novembro, a repetição do trauma, com 130 mortos já não permitiu obter essa reacção. A resposta securitária aos atentados, com a imposição do estado de emergência – que tem sido sucessivamente renovado – criou muitos anticorpos. A ideia de retirar a nacionalidade às pessoas condenadas por terrorismo – adoptando uma proposta da extrema-direita acabou por ser abandonada. E levou à demissão da ministra da Justiça, Christiane Taubira, uma figura conotada – e respeitada – pela ala esquerda do PS.

A governação de François Hollande – e de Valls, que pertence à ala mais à direita do PS – foi fracturante para o país e para a própria esquerda. E fê-lo num momento em que os cidadãos se sentem capazes de derrubar políticos dos pedestais onde passaram vidas inteiras. Em França, de uma penada, dois Presidentes: Hollande e Nicolas Sarkozy. E já agora, o ex-primeiro-ministro Alain Juppé, que tinha ambições a ser o candidato do centro-direita às presidenciais.

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