Habré condenado a prisão perpétua no “julgamento africano do século”

Pela primeira vez, um antigo chefe de Estado é condenado por crimes contra a humanidade pela justiça de outro país. Aconteceu num país africano, graças a meia dúzia de resistentes. Activistas esperam que a condenação do ex-ditador do Chade inspire outros sobreviventes.

Habré no arranque do julgamento, em Julho de 2015
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Habré no arranque do julgamento, em Julho de 2015 Seyllou/AFP
O ex-ditador, ainda no poder, em N'Djamena, em 1987
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O ex-ditador, ainda no poder, em N'Djamena, em 1987 Dominique Faget/AFP
Membros da assistência à entrada para o veredicto no Palácio da Justiça de Dakar
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Membros da assistência à entrada para o veredicto no Palácio da Justiça de Dakar Seyllou/AFP

Poucos acreditaram durante muito tempo. Souleymane Guengueng, por exemplo, jurou que se saísse vivo da prisão levaria os seus carrascos à justiça. Demorou 26 anos, mas a teimosia desses poucos deu frutos e um ditador foi condenado pelos seus crimes. “Culpado”, afirmou o juiz Gberdao Gustave Kam. “Vitória”, gritou-se no tribunal, em Dakar, e nas ruas das cidades do Chade, onde as vítimas seguiram o processo em directo na televisão e na rádio.

Hissène Habré, com 73 anos, ainda pode recorrer do veredicto deste tribunal especial criado no Senegal a pedido da União Africana, “em nome de África” – a primeira vez que um ex-chefe de Estado é julgado noutro país por crimes contra a humanidade. Mas as vítimas já não vão esquecer o momento em que ouviram o juiz do Burkina Faso dizer “culpado”. “África, às vezes, dá o exemplo”, escreve o jornal Libération.

Naquele que os activistas descrevem como o “julgamento africano do século”, Habré foi condenado a prisão perpétua por “execuções sumárias, desaparecimentos forçados, tortura, assassínio”. O juiz considerou provado que Habré “criou um sistema onde reinavam a impunidade e o terror” durante os seus oito anos de poder em N’Djamena, entre 1982 e 1990.

Foi o fim de um longo processo em que as vítimas nunca desistiram e acabaram por convencer o Senegal e a União Africana a agirem. Em 2013, Habré foi finalmente detido no país que escolhera para um exílio dourado – na fuga terá levado milhões dos cofres do seu país.

O ex-ditador nunca reconheceu o tribunal criado para o julgar e esteve quase sempre ausente das sessões. Os seus advogados recusaram ouvir o veredicto e a sentença e consideram que este era um julgamento político decidido à partida. Para activistas em todo o mundo, trata-se de uma “decisão histórica”, um “daqueles momentos a que as vítimas em toda a parte se podem agarrar nos momentos mais negros, quando a justiça parece fora de alcance”, reagiu a Amnistia Internacional.

40 mil vítimas

Segundo uma Comissão da Verdade criada em 1992 no Chade, o regime de Habré foi responsável pelo assassínio e desaparecimento de 40 mil opositores políticos. Em 1999, o advogado norte-americano, Reed Brody, da Human Rights Watch, aceitou investigar o caso, quando ainda pressionava o Parlamento britânico a retirar a imunidade ao ex-ditador chileno Augusto Pinochet e militava para que este fosse julgado. No mesmo ano, surgiam as primeiras provas a ligar directamente Habré aos crimes do seu regime, que a Human Rights Watch reuniu num relatório em 2001.

A organização decidiu chamar-lhe “o Pinochet africano” – Pinochet não chegou a ser julgado, mas o precedente ficou: “Decidimos dar-lhe esta alcunha para sublinhar o que estávamos a tentar fazer: levar um ditador à justiça no país onde se encontrava e aplicar o princípio Pinochet em África”, o princípio da jurisdição universal, que permite a tribunais nacionais julgarem crimes cometidos noutro país, explicou Brody durante o processo que começou em Julho do ano passado.

Para além de ouvir centenas de testemunhas, o tribunal teve acesso aos documentos encontrados na antiga sede da Direcção de Documentação e Segurança, a polícia política de Habré, incluindo 1265 comunicados dirigidos ao ditador sobre o estatuto de 898 detidos.

Brody foi um dos que acreditaram. Mas tudo começou com algumas das vítimas de Habré que não só acreditaram no que todos os outros consideravam impossível como o fizeram correndo risco de vida – no Chade muitos homens fortes de Habré mantiveram posições importantes quando este foi derrubado por um antigo delfim, Idriss Déby, ainda no poder, e se exilou no Senegal.

Mover montanhas

Guengueng, o contabilista que a doença (hepatite, paludismo e dengue) e a tortura quase mataram na prisão, começou a reunir testemunhos de outros detidos assim que foi libertado, em 1990, formando uma das associações de vítimas. Foi perseguido e ameaçado de morte. “Os meus amigos diziam que estava doido. Mas eu não conseguia parar”, contou ao Independent. Jacqueline Moudeina, advogada chadiana, foi a primeira a aceitar representar as vítimas e ainda tem na perna pedaços da granada com que foi atingida em 2001, durante uma manifestação em N’Djamena.

Este julgamento “é também exemplar porque mostra como a vontade feroz de um punhado de homens e mulheres, Brody, Guengueng, Moudeina e alguns outros, pode literalmente mover montanhas e vencer num processo durante muito tempo considerado utópico”, escreve o Libération. “Esta segunda-feira os heróis do dia são estes combatentes da justiça.”

Brody assistiu ao veredicto sentado no tribunal ao lado de Guengueng. “Agora, sinto-me dez vezes maior do que Hissène Habré”, disse o ex-preso.

“A era em que os tiranos podiam brutalizar o seu povo, pilhar as riquezas do seu país e depois fugir para o estrangeiro para uma vida de luxo está a chegar ao fim”, comentou Brody. “Esperemos que tal como as vítimas de Habré foram animadas pelo que as vítimas de Pinochet conseguiram, outros sobreviventes, outros activistas, se inspirem agora pelo que os sobreviventes de Habré conseguiram”.

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