Guterres é “um secretário-geral que fala na primeira pessoa”

António Guterres está a afirmar-se como secretário-geral da ONU com um “perfil muito político e assertivo”, diz o chefe da diplomacia portuguesa.

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Augusto Santos Silva: Guterres “tem dado provas” da sua “qualidade política” na ONU Enric Vives-Rubio (arquivo)

Estes 100 dias de António Guterres à frente das Nações Unidas mostraram, na avaliação do ministro dos Negócios Estrangeiros Augusto Santos Silva, a “independência” que prometeu ter perante a máquina interna e as potências mundiais. O chefe da diplomacia portuguesa destaca também o seu “pragmatismo” e “capacidade de falar com todos”, e não tem “nenhuma dúvida” de que Guterres vai fazer reformas. Mas o que considera “distintivo” em Guterres é o facto de ter colocado a fome em África “imediatamente” na agenda internacional.

Que perfil de secretário-geral mostrou Guterres ter nestes primeiros 100 dias?
É um secretário-geral das Nações Unidas que também fala na primeira pessoa, que exprime as suas convicções, usa as suas próprias ideias, os seus próprios afectos e sentimentos. Do ponto de vista mais institucional, afirmou a presença das Nações Unidas. Vimos o secretário-geral nas negociações sobre Chipre, no Conselho de Direitos Humanos, no Sudão e no nordeste de África e nas regiões ameaçadas pela fome, e sentimos uma presença forte da ONU através do seu secretário-geral.

O contraste com o antecessor só pode favorecer António Guterres…
…não diria isso. Diria, sim, que nestes 100 dias se têm notado duas das promessas essenciais do “programa eleitoral” de Guterres: é um secretário-geral de perfil muito político e assertivo, que mostra independência perante a estrutura de funcionários e as potências. Evidentemente que o secretário-geral representa a organização e os equilíbrios que existem no Conselho de Segurança, mas estes 100 dias têm demonstrado a independência prometida.

Guterres não vai ter estado de graça?
Em relação ao anterior secretário-geral, que reconheço ter um estilo diferente, quero assinalar que Ban Ki-moon esteve à frente da ONU quando a ONU marcou muito a agenda mundial, através da agenda do desenvolvimento sustentável e das alterações climáticas. Os mandatos não podem ser avaliados senão no seu conjunto. Pode dizer-se que Guterres não teve direito a nenhum estado de graça por razões que são objectivas. Desde o início do mandato que os problemas não têm cessado: o conflito israelo-palestiniano, as expectativas em relação à nova administração Trump, os alertas sobre a situação de fome — há muitas décadas que não se verificava o perigo de a fome extrema atingir 20 milhões de pessoas —, o conflito na Síria. Nestes 100 dias, imagino que António Guterres não deva ter tido mais do que dois dias relativamente tranquilos.

De que modo é que a nova realidade política trazida pela eleição de Trump obrigou Guterres a repensar a sua estratégia?
Não diria que o tenha obrigado a repensar a estratégia. Mas Guterres, como qualquer líder político do nível em que ele está, é ao mesmo tempo um indivíduo com visão e um indivíduo pragmático, que procura em cada momento encontrar os equilíbrios e as condições que lhe permitam realizar as coisas. E tem dado provas dessa qualidade política, que é o pragmatismo e a capacidade de falar com todos. As primeiras declarações de Trump foram no sentido de uma certa desvalorização da ONU e de ameaça de cortes no financiamento, mas ainda nenhuma decisão nesse sentido foi tomada. E espero — e desejo — que esteja a haver um diálogo entre as estruturas da ONU e os EUA de forma a que o empenhamento e investimento dos EUA continuem muito fortes.

Guterres tem conversado com os republicanos, mas o que tem ouvido é que ou faz reformas grandes ou não terá apoio da Casa Branca.
Não tenho nenhuma dúvida de que Guterres vai fazer reformas nas Nações Unidas — até porque essas reformas são necessárias. Já o fez no Alto Comissariado para os Refugiados, onde seguiu a orientação de gastar menos com a estrutura e gastar mais com os serviços prestados pela estrutura. Não sei se vai conseguir concretizar essa orientação, mas desejo que sim e pode contar com o apoio de Portugal nessa tarefa. Baseado no que os parceiros europeus, as autoridades americanas e a embaixada de Portugal na ONU me dizem, diria que não estão ainda tomadas as decisões que eu temeria no sentido de reduzir radicalmente o envolvimento dos EUA nas Nações Unidas.

Pensando nas medidas concretas, que decisões relevantes tomou Guterres nestes primeiros três meses?
Em primeiro lugar, reduziu bastante o seu próprio gabinete, que tinha mais de 100 pessoas; em segundo, a composição do seu gabinete, porque significou o cumprimento imediato de um dos seus primeiros compromissos — praticar uma política de igualdade de género; e, em terceiro, pôr imediatamente no centro da ONU as questões humanitárias, como a fome em África, e imprimir logo a sua marca. Ele sempre disse que representaria uma visão da missão das Nações Unidas vista através das populações e, em particular, das populações mais precárias.

Sublinha África, mas nestes 100 dias Guterres foi a campos de refugiados sírios na Jordânia, foi à cimeira da Liga Árabe, ao Iraque, falou de Israel e da Palestina…
Sim, mas essa é a agenda expectável de um secretário-geral. É o mesmo que acontece a qualquer administração norte-americana. Ela pode dizer que vai desligar-se do mundo e centrar-se nos problemas internos, mas o mundo rapidamente lhe entrará pela porta. Claro que o secretário-geral da ONU fala do conflito israelo-palestiniano, claro que fala do Médio Oriente, dos campos de refugiados, dos impasses políticos que ainda subsistem, como o Chipre. Mas o que acho distintivo no caso de António Guterres é o facto de, imediatamente, ter colocado na agenda a fome em África, porque isso documenta bem o ponto de vista que ele disse que seria o seu.

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