Tensão, protestos e conspirações em Cleveland: bem-vindos à Trumpland

Por estes dias, Cleveland está cheia de pessoas bizarras, umas mais zangadas do que outras, num estranho ambiente que cruza a tensão antes de um acontecimento grave e um festival com muitos sorrisos, excitação e cor. Todos à espera da coroação de Donald Trump na convenção do Partido Republicano.

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A convenção nacional do Partido Republicano arranca esta segunda-feira em Cleveland AFP/TIMOTHY A. CLARY
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A chuva é daquelas que irrita mais do que molha, e todos sabemos que a irritação é ainda maior quando nos dizem que o dia vai chegar soalheiro. Mas o caminho para chegar a pé ao centro de Cleveland num sábado tristonho, avançando de toldo em toldo, à procura do degrau da próxima porta para atenuar este nosso problema de país desenvolvido, acaba por ser uma metáfora perfeita para o que espera milhares de pessoas a partir desta segunda-feira, o dia em que começa a convenção nacional do Partido Republicano que vai coroar Donald Trump como seu candidato oficial.

Cleveland, a cidade que abriu os braços a mais de um milhão de pessoas no mês passado para comemorar sem violência a vitória dos seus Cavaliers na final da NBA, transformou-se este fim-de-semana num gigantesco labirinto de grades de ferro, de zonas proibidas, de estradas cortadas, e de mais irritações de país desenvolvido estampadas nos rostos de desespero dos automobilistas. Sim, a convenção do Partido Republicano chegou à cidade e vai ficar cá até quinta-feira, mas essa não é a notícia. A notícia é muito curta e pode ser dada em apenas duas palavras: Donald. Trump.

Aos quase 400 mil habitantes vão juntar-se mais 50 mil pessoas esta semana. Mesmo que se juntassem todos, não fariam metade da parede humana que se ergueu para coroar os heróis do basquetebol – afinal, desde quando a política importa mais do que o desporto na hora da festa? Neste caso, a resposta é difícil: se Donald Trump está na cidade, a cidade deixa de saber se a convenção é boa para o negócio ou se pode ser muito má para as lojas. E para as pessoas.

Eles, os de Cleveland, dizem que não. Ninguém que more na cidade vai causar distúrbios durante esta semana, garantem. Dizem, por outras palavras (que só os portugueses entendem e repetem), que a imagem que têm de Cleveland é a mesma que os portugueses têm de Portugal: são o povo mais simpático do mundo e estão sempre prontos a ajudar quem os visita. Mas em relação aos outros, "os de fora", já não põem as mãos no fogo.

Ninguém diz nomes, mas eles estão tatuados por cima de cada palavra mais contida. Falam das manifestações de movimentos e organizações como o Black Lives Matter, que protesta contra a morte de cidadãos negros às mãos da polícia, e o Stand Together Against Trump, que critica as declarações de Donald Trump sobre imigrantes, muçulmanos e mulheres. Mas temem, principalmente, os mais radicais – o Novo Partido dos Panteras Negras, considerado um grupo de ódio, sem qualquer ligação directa aos mais famosos Panteras Negras das lutas pelos direitos cívicos nos EUA nas décadas de 1960 e 1970; e o grupo supremacista branco Eternal Sentry [Sentinela Eterna], que apoia Donald Trump. E depois também há os Bikers for Trump, cujo líder, Chrix Cox, promete erguer uma "parede de carne" entre os manifestantes e a polícia, com milhares de motociclistas.

Para aquecer ainda mais o caldeirão, no estado do Ohio é legal andar armado na rua sem uma licença específica, e vários grupos disseram que vão exercer esse direito. O chefe da polícia de Cleveland, Calvin Williams, diz que o ideal seria que as pessoas deixassem as armas em casa, mas que fazer: Calvin Williams diz também que a lei é para ser respeitada.

O clima de tensão e de incerteza é evidente até nas portas e janelas das lojas. Umas, seguras de que a primeira convenção do Partido Republicano em Cleveland nos últimos 80 anos vai ser uma máquina de fazer dinheiro, exibem com orgulho nas montras enormes cartazes a dar as boas-vindas a visitantes e delegados; outras, mais discretas, limitam-se a fazer negócio como dantes; mas algumas fecharam-se aos visitantes, aos delegados, à convenção, às barreiras de ferro, ao medo.

No n.º 818 da Huron Road, a Prospect Music, fundada em 1941, vai estar fechada durante a semana da convenção. Não foi preciso perguntar a ninguém, está na porta: "Loja fechada durante a semana da Convenção do Partido Republicano." Até segunda-feira da próxima semana, quem precisar de uma guitarra ou de uma bateria em Cleveland, vai ter de bater a outra porta.

Ao lado, no 806, a Camera City vai deixar de reparar câmaras fotográficas, de digitalizar fotografias e de "transferir os seus filmes caseiros para DVD ou cassete de vídeo, com garantia de alta qualidade". Na montra, um apelo ao coração dos manifestantes em forma de uma folha A4 escrita à mão e colada com fita-cola: "Este é um negócio familiar que funciona com muitas dificuldades desde Setembro de 1975. É o sustento de duas famílias. Por favor, quando exercerem o direito que vos é concedido pela Primeira Emenda, respeitem esta propriedade como se fosse vossa ou da vossa família."

Mais uns passos à frente, no n.º 800, a Gerold Optical decidiu suspender a venda de óculos e seguiu o exemplo da Prospect Music: fechada até segunda-feira, 25 de Julho.

Mas é na mesma Huron Road que as colunas do Clevelander Bar and Grill, apontadas para a esplanada, cortam o silêncio das lojas fechadas, dos agentes dos serviços secretos – silenciosos e circunspectos, como seria de esperar – e dos poucos polícias de trânsito que orientam as idas e vindas de veículos pretos conduzidos por outros agentes silenciosos e circunspectos, como seria de esperar.

Sentados na esplanada, ao som de American Idiot, dos Green Day, estão Corey Smith e Paula Harding, ambos nascidos e criados em Cleveland, ele um homem negro com muitas coisas para dizer sobre Donald Trump, ela uma mulher branca com muitas coisas para dizer sobre Donald Trump.

A primeira pergunta atirada para cima da mesa é para ambos, para quem a apanhar primeiro, e é sobre o impacto da convenção na cidade, mas Corey Smith entra em acção, despacha a resposta e vai directo ao que tem guardado para dizer "a Portugal e ao mundo": "Gosto da tensão, acho que é bom para Cleveland porque vai trazer dinheiro para a cidade. Mas só desejava que os republicanos tivessem um candidato melhor."

Corey e Paula são ambos do Partido Democrata, votaram em Bernie Sanders nas primárias, mas nem hesitam quando se lhes pergunta o que vão fazer em Novembro nas eleições presidenciais: vão votar em Hillary Clinton, pois claro. Ao contrário de alguns fervorosos apoiantes de Sanders, o casal diz perceber que é preciso fazer concessões para não perder tudo, principalmente quando do outro lado está Donald Trump.

"Se conseguires dizer-me uma única coisa inteligível que o Donald Trump disse até agora, eu até admitiria votar no Donald Trump. Mas ele não disse nada que se perceba. Assusta-me mesmo a possibilidade de ele vir a ser eleito, apesar de não acreditar que ele ganhe", diz Corey Smith, antes de avançar uma explicação para o sucesso de Trump nas eleições primárias: "A América está dividida em duas metades. Há a parte racista e a parte mais liberal. Ele está a conquistar o apoio de muitas pessoas que têm teorias da conspiração, que têm ódio a culturas diferentes."

Paula Harding diz que a maioria dos seus amigos receia o que pode acontecer nas ruas de Cleveland, mas não por causa da convenção do Partido Republicano – o problema é só um, diz Harding, e mais uma vez pode ser resumido em duas palavras: Donald. Trump. "Em Filadélfia não estão preoucpados com protestos e motins na convenção do Partido Democrata, mas quando temos aqui uma pessoa que instiga o ódio a concorrer à presidência, é normal que haja pessoas descontentes."

Perto da última vedação de ferro que separa o centro de Cleveland do pavilhão onde vai decorrer a convenção republicana, Johnny Rice fala com dois activistas curdos, que lutam pela criação de um Estado para a sua nação a partir de Washington. Para o activista Kani Xulam, do grupo American Kurdish Information Network, o importante é "explicar aos americanos quem são os curdos, cerca de 40 milhões de pessoas que amam a liberdade e que têm um inimigo em comum com os Estados Unidos: o Estado Islâmico". para Johnny Rice, um auto-proclamado pastor cristão também de Washington, o importante é passear pelas ruas de Cleveland com uma T-shirt de Donald Trump, um crachá com a figura de Martin Luther King, um alerta contra "o espírito anti-cristo de Hillary Clinton", a quem chama "a bruxa marioneta dos Illuminati", e um aviso: Barack Obama "vai tornar-se no secretário-geral da ONU em 2017" (à atenção de António Guterres), e formará com o Papa Francisco "a liderança bicéfala de um governo mundial".

Foi difícil ouvir o resto da conversa: para além dos helicópteros da polícia que sobrevoavam a zona, um pequeno avião andava às voltas nos céus do centro de Cleveland com uma daquelas faixas que costumamos ver na praia a convidar toda a gente para uma festa só para pessoas vestidas de branco ou para um concerto no dia tal. Mas, desta vez, a mensagem era um pouco diferente: "Hillary para a prisão em 2016", lia-se na faixa, paga pelo site Infowars, do conhecido teórico da conspiração Alex Jones.

Por estes dias, Cleveland está cheia de pessoas bizarras, umas mais zangadas do que outras, num estranho ambiente que cruza a tensão antes de um acontecimento grave e um festival de música ao ar livre, com muitos sorrisos, excitação e cor: o pastor cristão que compara Obama, Clinton e o Papa Francisco a demónios; o antigo apoiante de Hillary Clinton que agora protesta nas ruas de Cleveland com uma máscara da candidata do Partido Democrata, uma T-shirt com a palavra "Infiel" e um cartaz com a inscrição "Trump Vs Tramp" (Trump Vs Vagabunda); e inúmeros jornalistas das mais famosas cadeias de televisão que convidam apoiantes declarados de Trump ou Clinton a fazerem comentários políticos e, aparentemente, esperam respostas imparciais.

Entre os vendedores de bonecos de Donald Trump que abanam a cabeça a dizer que sim, os receios de protestos violentos e a dor de cabeça das medidas de segurança, o momento que mais fazia franzir o sobrolho a visitantes e delegados acontecia na praça central, onde algumas crianças bricavam na água à sombra do monumento dedicado aos soldados e marinheiros que lutaram na Guerra Civil. Lee Phelps, um activista negro de 31 anos que não costuma votar, mostra a quem passa um cartaz onde se lê "U Matter 2 Me", numa referência à frase "Black Lives Matter" (as vidas dos negros importam).

Muitos param para tirar fotografias, um abraço aqui, um obrigado ali. Para Phelps, não pode haver melhor recompensa: "A categoria demográfica não interessa. Se eles perceberem que eu me importo com eles, a resposta é positiva. Podem ser negros, brancos. Há sempre alguém de cada um desses grupos que compreende esta mensagem. E espero que esta não seja a única mensagem positiva que conseguimos transmitir."

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