Europa: o acquis da revolta ética

O dilema dos dirigentes da nova vaga europeísta é assumir o necessário realismo político sem por em causa os valores éticos.

A crise que atravessa a Europa não é apenas económica, mas também uma crise dos valores fundamentais em que assenta a União Europeia. O risco é que se volte ao discurso utilitarista do “homem económico” em detrimento da ação política ou que se abandonem os princípios em nome da prevenção de atos de terror. A anunciada refundação deve integrar o aquis da revolta ética que percorreu a cidadania europeia contra a brutalidade social e ecológica das políticas económicas, a corrupção da política e dos políticos, o racismo com que foram tratados os refugiados e o apoio às ditaduras do Sul mediterrânico, em nome da realpolitick

Recorro aqui à expressão “revolta ética”, cunhada pelo dissidente polaco Adam Michnik, no contexto da denúncia do enorme logro que era a União Soviética. Como sublinhou Edgar Morin, analisando o mundo ilusório da realpolitick, “a lucidez que permite a revolta ética é fundamental para compreender a própria realidade”.

Quem viu claro não foram os que se focaram na necessidade de reformas do sistema financeiro, em nome da eficácia, mas sim os que se revoltaram contra as consequências éticas do primado dos mercados. Aos europeus do Sul foram atribuídas características inatas de preguiça e corrupção que justificariam os limites da solidariedade. Recordemos a arrogância de Jeroen Dijsselbloem, ministro das Finanças da Holanda, ao afirmar, referindo-se aos europeus do Sul, que “não se pode gastar todo o dinheiro que temos em bebidas e mulheres e depois pedir apoio”. À Europa do Sul, mediterrânica, quase África, foi aplicada a velha grelha de leitura racista que marca o discurso sobre os africanos. Lembremo-nos do discurso do presidente francês, Nicolas Sarkozy, em 2007, em Dacar, para quem o homem africano, vivendo ao ritmo lento das estações do ano, não deixa espaço “nem para a aventura humana nem para a ideia de progresso”.

Crise dos valores fundamentais com a banalização do racismo, que se repercutiu na falta de fraternidade com os refugiados, identificados com os atos de terror pela simples razão de serem muçulmanos. Começou a atribuir-se aos muçulmanos uma identidade única identificada com o fanatismo, a violência e o desrespeito dos direitos, nomeadamente das mulheres. O primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orban, declarou, de forma monstruosa, que “cada imigrante é uma ameaça à segurança pública e um risco de atos de terror”. A crise dos refugiados está longe de estar resolvida. Nos primeiros cinco meses de 2017 já morreram 2000 pessoas a tentar encontrar asilo na Europa, e a União continua a criticar as ONG que os tentam salvar.

Na política externa da União, particularmente no Sul do Mediterrâneo, também se corre o risco de um regresso às opções anteriores às revoluções árabes de 2011, com o apoio a regimes autoritários e o medo das alternativas, apressadamente identificadas com o caos. O conceito de resiliência da Estratégia Global da União não pode significar erigir ditadores como o general Sissi ou o criminoso de guerra Assad como fatores de estabilidade.

Já desde o 11 de Setembro que os direitos humanos estão sob ameaça constante das medidas securitárias tomadas para prevenir os atos de terror, erigido em ameaça existencial às nossas sociedades. A “guerra contra o terror”, a pesada herança da administração Bush, foi contaminando a Europa, como se viu em França desde o início da presidência de Sarkozy. A esperança criada pela vitória de Macron pode desvanecer-se se o novo Presidente falhar na defesa dos valores éticos em nome da segurança externa e interna. É preocupante a sua afirmação que Assad é um inimigo do povo sírio, mas não da França, quando Damasco comete crimes contra a humanidade, logo contra sírios e franceses.

Uma política que integre o aquis da revolta ética não significa recusar o realismo necessário à ação política e de segurança ou o abandono da diplomacia. A ação política é a arte da negociação e raramente atinge plenamente os seus objetivos. O dilema dos dirigentes da nova vaga europeísta, como Emanuel Macron, é assumir o necessário realismo político sem por em causa os valores éticos.

Livres do susto Marine Le Pen, cuja vitória teria significado o fim da União, não se pode voltar à propaganda do discurso otimista, autocongratulatório, como observei ainda recentemente numa conferência em Bruxelas. Destacaram-se aí, sobretudo, os sinais de recuperação económica e os progressos que se podem fazer no domínio da política de defesa, no vazio criado por Trump.

É verdade que há um efeito Macron, e a eleição de um Presidente que fez campanha defendendo a refundação da União Europeia, assumindo a necessidade da sua democratização e recusando a banalização da islamofobia, criou a esperança de um novo momento europeu, mas tem que ser acompanhado pelo reconhecimento de que a União, incluindo a França, viveu e vive uma crise política e ética, consequência do seu enfraquecimento como comunidade de valores, que fragilizou o contrato social europeu e levou à sua rutura na Grã-Bretanha.

A afirmada convergência franco-alemã na questão dos refugiados, o início de processos contra a Hungria, a Polónia e a República Checa pela recusa de acolhimento de refugiados, são sinais de que algo está a mudar. No novo cenário que agora emerge, os dirigentes dos Estados da União devem tentar moldar as forças que lhes escapam, definindo, como sugere Hannah Arendt, “uma finalidade em função da qual nos podemos orientar com toda a confiança”, sem escamotearem as graves falhas éticas dos últimos anos. Se assim fizerem, haverá razões para um otimismo que não prescinda do nosso espírito critico.

O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico 

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