EUA: “Estados Umanos da América”

Se Trump vencer, é melhor destruir a estátua da Liberdade.

“Herrar é umano” – para além de “in God we trust”, esta poderia bem ser a divisa da superpotência que domina o globo. Fá-lo não somente a nível económico-financeiro, mas também militar, social e cultural. Não se veja neste escrito um qualquer anti-americanismo primário, mas uma recusa de um acrítico “pensamento único”.

Os Estados novos têm problemas específicos, mas a juventude do país em causa já não é desculpa para construções inadmissíveis para uma boa parte do mundo. Refiro-me, especificamente, ao modo como aquele país lida com as questões do sistema penal. Sobretudo desde a era Reagan e a “war on drugs”, o Direito Criminal daqueles Estados vem-se caracterizando por um “punitive turn”, por uma concepção de justiça no essencial retributiva, pela manutenção da pena de morte em vários deles e por legislação draconiana em vários domínios. A título de ilustração: o país da Liberdade é também aquele que admite que, p. ex., um seu tribunal condene o arguido – com o seu consentimento – a sofrer a pena, pelo crime de violência doméstica, de a ofendida lhe cuspir na cara em solene audiência de julgamento (“shame sanctions”). Ou de os ofensores por crimes rodoviários serem obrigados a conduzir com autocolantes que os identificam como delinquentes, para já não falar na legislação em vários pontos medieva,  em matéria de crimes sexuais, como as chamadas “leis de Megan”, em que os condenados que já cumpriram pena de prisão por tais delitos podem ser monitorizados, por todos, a qualquer instante através de um simples “click” na internet. Do mesmo passo, para quem reincidir, adaptando uma regra do basebol (“three strikes and you’re out”), à terceira condenação – que nem tem de ser por um delito grave (“felony”), podendo ser por uma “misdemeanor” (algo similar, em Portugal, a alguns delitos pouco graves ou a contra-ordenações) –, o mínimo punitivo é de 25 anos e, normalmente, é aplicada prisão perpétua.

É nesse mesmo Estado que se morre por não existirem cuidados de saúde universais. É também aí que os desperdícios alimentares são maiores e onde uma lei do uso e porte de arma, que não saiu do “far west”, vem trazendo para as notícias dramas como o mais recente, na cidade de Orlando. Este último, ao que se sabe, terá motivações terroristas, ligadas ao Daesh, mas indicia também um “crime de ódio”, figura muito estudada pela doutrina norte-americana. Aconteceu em Orlando, como podia ter sucedido em qualquer outro lugar. Tais actos merecem toda a nossa repulsa e o empenho em julgar os responsáveis por tais crimes atrozes, violadores do fundamento da personalidade humana: matar porque alguém tem uma diversa orientação sexual é atentar contra o mais lídimo de cada ser, é dizer a alguém que é “impuro” por ter gostos diversos da maioria estatística.

Certo é que Obama tentou fechar Guantánamo, alterar a legislação em matéria de armas e lançar o “Obamacare”. Em muitos destes pontos, uma maioria ultraconservadora republicana no Senado bloqueou tais iniciativas. Acredito que, para vários deles, ter um Presidente negro continua a ser um sapo que custa engolir. As marcas da Guerra Civil parecem ainda não erodidas pela História, em especial nos Estados do Sul.

Continuamos na história do horror ao contemplarmos a hipótese de Donald Trump ser o próximo Presidente. Se o for, é porque os eleitores se identificam com os seus programa (?) e personalidade. Em artigo recente aqui no “Público”, traçava-se um interessante retrato das suas principais características. Narcisismo, incapacidade de empatia com os outros, desprezo pelas opiniões contrárias e inadaptação a uma sociedade cada vez mais multicultural. Se Trump for eleito, tudo isto são, também, traços vincados da maioria dos norte-americanos. Os muçulmanos são todos terroristas, as mulheres são objectos condenados a servir os homens, os negócios e a economia são selvas, os mais fracos morrem e as minorias são estranhas e merecem repressão.

Como vários cidadãos conhecidos e menos conhecidos têm dito, também emigraria para o Canadá com alguém assim ao leme. Mas a questão é bem mais profunda: o sucesso de Trump deve-se a uma incapacidade das anteriores Administrações em cultivar valores universais de respeito pelos direitos humanos e de colocar em prática a palavra “God” de que se usa e abusa em qualquer discurso oficial. Os EUA estão assustados com o terrorismo e com uma brutal crise económica e alguém “out of the box”, politicamente incorrecto, surge como bóia de salvação para uma América que diz querer voltar a ser “grande”.

Se Trump vencer, é melhor destruir a estátua da Liberdade, ou melhor, transplantá-la para Cuba, p. ex. Será que a população americana em debandada acaba a tomar banhos de sol em Varadero?

Professor da Faculdade de Direito da Universidade do Porto

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