EUA: Do globalismo ao americanismo?

Os EUA têm inúmeros horrores pelos quais prestar contas.”

Peter Kuznick

1. Os americanos (EUA) estão fartos do mundo ou é o mundo que está farto dos americanos? Ou são as duas coisas? E tais sentimentos estão a fazer-se sentir como há muito tempo não acontecia, na escolha do (a) seu (sua) próximo(a) Presidente, ou não? E estão ou não a perder-se algumas certezas da política americana, como é o caso de quem quer mais uma guerra dever optar pelo partido republicano e de quem quer mais uma crise económica dever votar no partido democrático? Ou essa percepção inverteu-se? E será que esta eleição vai marcar o fim da proeminência das chamadas dinastias políticas americanas de pendor monárquico? Estaremos ou não perante a afirmação do sistema político americano de pendor presidencial, despindo-se dos ainda existentes laivos de influência monárquica? Sociológica e politicamente?

2. A evidência da influência das eleições americanas nas últimas décadas para todo o mundo tornou-se um grande acontecimento da política internacional. Do ponto de vista político, diplomático, económico e militar, no cruzamento da geopolítica com a geoeconomia e no quadro de um mundo transformado numa autêntica aldeia global, onde quase tudo é interdependente. Os EUA ainda são a maior potência do mundo. País com território rico e cheio de recursos (muitos deles autênticas reservas para o médio e longo prazo), com um poder militar que fazem deles o polícia do mundo (gastam mais em orçamento militar que a soma dos 12 maiores países desse ranking), com o seu chapéu militar e tecnológico protegem os europeus e a Europa, enquanto se assumem também como uma potência do Pacífico. Ao mesmo tempo que através da força da sua indústria cinematográfica chegam a quase todas as salas de cinema e de televisão do mundo, com influência direta na disseminação dos seus valores de vida, dos seus feitos, dos seus heróis, da sua história. Isto, ao mesmo tempo que mantêm uma rede de investigação e de conhecimento através de várias universidades estatais e privadas de renome mundial (os rankings atestam as suas universidades como as melhores do mundo), com centros de saber de vanguarda, atrativos como poucos, para estudantes de todo o planeta. O que é que os faz ser, ao mesmo tempo, o centro do poder mundial e em contradição, coligarem-se com os produtores de crude, alguns deles suspeitos de financiarem o terrorismo e de participarem em várias guerras de procuração?

3. São muitas as contradições para um país tão novo, em comparação com tantos países, nomeadamente do continente europeu e asiático. Um país que se fez, ao longo da sua história, com a imigração no centro da sua construção identitária e nos sentimentos de pertença. Povos de vários pontos do mundo fizeram a América. Sim a América do Leste, do Oeste, do Sul e do Norte. A América desde os territórios do Alasca até aos muros da vergonha fronteiriça mexicana. Muros e fronteiras que há já muito tempo deixaram de ser apenas físicos, para serem cumulativamente sociais, económicos, linguísticos, culturais e até religiosos. Um país que se fez, pelo pioneirismo, pela força e coragem, pela iniciativa, pelo mérito, pelo trabalho, muito contra o que foi e é o Estado, numa definição mais jurídica e política. Um país que hoje, ao ver-se ao espelho, se contradiz e parece não gostar do que vê e do que parece ser. Um país que tem também desigualdades sociais e económicas. Um país que tem cada vez mais a certeza que já faltou mais para a sua língua mais falada deixar de ser o inglês e passar a ser o castelhano. Quem diria! Imaginar na década dos Kennedy do século passado que o castelhano (a língua de Fidelito!) viria a ser a língua mais falada no solo da América do Norte! Hoje os EUA são um mosaico social e étnico muito diferente do que eram no século passado. Os hispânicos são quase 18%, os afroamericanos quase 14% e os asiáticos quase 6%. A estimativa para daqui a décadas é que os WASP (white, Anglo-Saxon and Protestants) já não serão a maioria da população, mas cerca de 45%. E os hispânicos serão 24%, os asiáticos 14% e os afroamericanos cerca de 13%. Devendo ser somados outros números relativos aos chamados multirraciais e pós raciais americanos.

4. O número de homens sem trabalho nos EUA nunca foi tão grande. É só ler o livro Men without work: America`s invisible crisis (Templeton Press 2016) de Nicholas Eberstad, para se perceber, que em relação ao emprego este está a níveis do final da grande depressão dos idos anos 40 do século passado. Os de sempre (brancos e anglo saxões) no essencial estão contra a alteração radical da genética e da identidade americana e estão contra a nova realidade social. Porque durante dois séculos, brancos, anglo saxões e muitos protestantes, foram donos e senhores do poder e no seu uso, fizeram os EUA muito à sua medida. Tudo isto acontece quando os EUA têm grandes reservas energéticas (petróleo e gás de xisto), uma moeda forte e universal (o dólar), a língua franca e global que é o inglês, as melhores universidades do mundo, e até no registo de novas patentes continua em alta sendo apenas superados pela China. É o terceiro país mais populoso do mundo com 322 milhões de pessoas (só superado pela China e Índia com grande diferença), têm por seu turno o PIB mais alto do mundo (56 mil milhões), são o segundo país (a seguir à Rússia) com maior arsenal nuclear e como já se referiu são a superpotência militar a grande distância (só em orçamento militar gastam o dobro da China). Mas existem outros indicadores. Por exemplo são o país com mais medalhas olímpicas, em exportações de alta tecnologia só estão atrás da China e da Alemanha, são líderes no transporte aéreo comercial e civil, são líderes nas exportações de armamento militar e até em artigos científicos lideram com quase quatrocentos e cinco mil publicados. Junta-se também a sua influência e poder derivados dos acordos de Bretton Woods, na sua ainda unipolaridade normativa e financeira.

5. É neste quadro que as eleições americanas ocorrem. Várias eleições. As mais mediáticas, as presidenciais entre Donald Trump e Hillary Clinton. As eleições para o Senado (menos mediatizadas) que opõem republicanos e democratas e que vão condicionar em função dos seus resultados, muito do exercício da função presidencial por quem vier a vencer. E faz sentido, que se atente, ao facto de apenas trinta por cento dos eleitores americanos estarem satisfeitos com as escolhas por parte dos republicanos e dos democratas, com os nomes de Donald Trump e de Hillary Clinton. Assim se percebe melhor como a campanha se transformou paulatinamente na escolha do menor dos dois males. Aliás, nos últimos dias generalizou-se o aumento do número de cartazes espalhados pelos EUA, contra Trump e Hillary. Estas eleições fizeram ruir a civilidade da política americana. É muito o que divide Trump e Hillary. Na globalização, na saúde, na imigração, no combate ao terrorismo, na construção de novas infraestruturas, no controlo de armas, nos impostos e salário mínimo, na política externa. E em muitas mais coisas. São vários os medos dos americanos. Sobretudo dos deserdados e excluídos do desenvolvimento. Os americanos normais têm mais medos do que certezas. Daí estarem mais disponíveis para trocarem as liberdades pela sua segurança. O globalismo pelo americanismo.

6. Há algo que os dependentes da Europa e no mundo do poder dos EUA não gostam que se afirme. Que os EUA têm deixado de exportar estabilidade. E antes pelo contrário. E exemplos não faltam. E que ao mesmo tempo têm importado instabilidade. Cada vez mais instabilidade. Levando-os internamente cada vez mais a trocar liberdades por segurança obsessiva. E nós na Europa, com o desastre e o atoleiro no Médio Oriente, já andamos a colher o mesmo. Exportámos instabilidade. E importámos instabilidade. É assim que acontece quando se intervém em países e territórios que não se conhece. Aliás apesar de ter passado muito despercebido nos debates sobre as eleições americanas, tem-se discutido a NATO e o seu papel num século cada vez menos ocidental. E até se tem perguntado se a Europa se divide cada vez mais ("Brexit") porque não a NATO também não se poder dividir? E existe mesmo quem afirme que se Trump vencer, cai a América humanista e das liberdades e das oportunidades. E que até a estátua da liberdade deve ser retirada. E que será fatal que o conceito de superpotência venha a ter de ser repensado. Neste quadro existem cada vez mais vozes nos EUA a defender uma alteração radical na política e diplomacia externa americana, mesmo que isso venha a contribuir para a separação dos dois lados do Atlântico Norte (EUA e Europa). E, sendo assim, como ficará a Europa sem os EUA? Sem o seu chapéu militar e tecnológico? É que os EUA como potência do Pacifico também estão cada vez mais pressionados no continente asiático, devido a crescente militarização deste lado do mundo, onde vivem dois terços dos sete mil milhões de habitantes da população mundial. Não é por acaso que o acordo de comércio livre entre os EUA e onze países do Pacífico é polémico dentro de portas. Apesar do entusiasmo de Obama, Hillary não o vê com bons olhos. Mas este acordo é também um sinal à China, para tentar suster a sua afirmação hegemónica no continente asiático. É também aqui que se joga muito o declínio e ou a hegemonia americana. E a exportação ou não de estabilidade e a importação de estabilidade. Ou o seu contrário.

7. Aqui chegados, impõe-se que se questione. Os EUA devem permanecer fiéis ao seu globalismo mitigado, ou antes pelo contrário, dentro e fora de portas, devem adoptar o americanismo?

É que o americanismo não é o mesmo que globalismo.

Os EUA e os americanos querem ou não ter uma agenda isolacionista e protecionista? Porque várias camadas da sua população vivem pior que a população de países que muito têm beneficiado do apoio militar e económico americano durante muitos anos. É que a herança de Obama sobre o mundo não é propriamente do agrado de Hillary, que o achou mole e hesitante muitas vezes.

Se os EUA, enquanto superpotência do mundo, resolvessem deixar de querer ter esse estatuto e o correspondente protagonismo, o que é que aconteceria? É que Hillary representa mais a ordem liberal no mundo e Trump a ordem protecionista.  A vários níveis. E também aqui residem várias diferenças entre globalismo e americanismo.

O intervencionismo americano não é do agrado de Trump. O mesmo já não acontece com Hillary.

Muitos americanos estão fartos do mundo. O preço que têm pago para serem a superpotência, o polícia do mundo, com base na unipolarização ocidental e europeia, é grande de mais.

Henry Kissinger sustenta na sua nova ordem mundial, defendendo o regresso aos princípios de Vestefália.

O mundo está cada vez mais farto dos EUA. Tais sentimentos fazem-se sentir em cada vez mais continentes, colocando em causa que um país, com pouco mais de 4% da população do planeta o lidere formal e informalmente a vários títulos.

Para muitos Hillary Clinton é a última chance para parar a explosão da ordem mundial. Até porque quer a China, quer a Rússia, estão a trilhar o caminho, para se assumirem como challengers da política mundial. A eleição de Donald Trump abrirá ou não caminho para que tal aconteça mais rápido? É que com Trump ficará em causa o modelo de hegemonia liberal. E ganharão ou não, os que a propósito do declínio do ocidente, sustentam que uma das suas principais fragilidades é a excessiva dependência dos aliados em relação aos EUA? E se o retraimento dos EUA no plano internacional acontecer, isso dará origem a maior desordem mundial ou a mais equilíbrio mundial? Henry Kissinger tem vindo a chamar a atenção para a urgência da ordem mundial ser alterada.

Criticando a unipolaridade ocidental e o seu poder político, normativo e militar excessivo. Defendendo o regresso aos princípios de Vestefália e maior respeito pela soberania de cada país. Devíamos ouvi-lo. Daí que os EUA estejam, não só devido às eleições presidenciais, a viver o tempo de talvez transição forçada do globalismo para o americanismo. Resta saber se isso será bom ou mau, quer para os americanos, quer para o mundo. É por isso que Washington, tem sido e é atualmente uma espécie de capital mundial do risco. Quem diria, não é?

Licenciado, mestre e doutorando em Direito. Deputado e Presidente da Comissão. Parlamentar de Trabalho e Segurança Social

Sugerir correcção
Comentar