Estado de negação ou apenas “mente de macaco”?

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1.Desculpem se volto à vaca fria, que já foi devorada por uma sucessão de acontecimentos certamente menores. Refiro-me à cimeira de Bratislava e ao que ela significa. A experiência ensinou-nos a medir com relativa facilidade os sintomas que emergem de uma reunião de líderes, seja ela formal ou informal. Há duas maneiras, quase sempre infalíveis. A primeira é a sua própria agenda. Quando os líderes se reúnem e retiram da agenda oficial os temas mais urgentes e mais relevantes, fica-se logo a saber que alguma coisa está mal. Em Bratislava, os temas verdadeiramente decisivos foram colocados mais ou menos debaixo da mesa, mesmo que tenham servido de alimento aos múltiplos encontros de bastidores. Só que, desta vez, os elefantes na sala eram demasiado grandes. O primeiro chama-se Brexit, o segundo, refugiados. A cimeira era sobre o pós-Brexit, para mostrar que há um futuro sem o Reino Unido, esquecendo que ainda falta negociar o próprio Brexit, com o Reino Unido ainda sentado à mesa. A declaração dos líderes consegue não falar directamente do assunto, substituindo o Reino Unido, nunca mencionado, por “um país”. Quanto aos refugiados e à imigração, o assunto figura apenas no roadmap apresentado por Jean-Claude Juncker, com um enunciado de objectivos de curto e médio prazo que ainda não passam disso. Sabemos como os roadmaps que Herman von Rumpuy elaborou ou coordenou, aliás encomendados pelo Conselho Europeu, tiveram como destino uma gaveta, por expressa recomendação da chanceler. Wolfgang Münchau descrevia no Financial Times o ambiente de Bratislava como a manifestação de uma desordem neurológica chamada “défice de atenção” ou, como dizem os chineses, uma “mente de macaco”, incapaz de focar-se num assunto o tempo suficiente. Está ainda muita coisa para resolver, da união bancária à espera do seu terceiro pilar (garantia de depósitos) que Berlim quer adiar sine die, aos desequilíbrios económicos que afectam a zona euro, insustentáveis no médio prazo, passando por uma economia ainda vacilante e um sistema financeiro muito longe de se encontrar estabilizado. Perante este quadro, os líderes europeus, diz ele, resolveram deixar estes temas incómodos de lado, e avançar para outros domínios, no caso a segurança e defesa. Não é que a Europa não precise de uma capacidade militar credível. Precisa dela há muito tempo. Mas entre dizê-lo e fazê-lo vai uma longa distância. Incapazes de se entender sobre quase tudo, os líderes europeus quiseram dar um sinal de mudança num sector que hoje, obviamente, os europeus valorizam muito. A França, depois de ter assinado um tratado de defesa com o Reino Unido, mudou de discurso e voltou à sua velha postura antiamericana e antibritânica (do tempo de De Gaulle) que regressa sempre quando o Eliseu fica sem mais munições. O problema é que Paris e outras capitais desculpavam-se com o Reino Unido para não fazer nada e agora deixaram de ter esse pretexto. Num curioso artigo, o Politico Europa chamava a atenção para o que pensam alguns diplomatas e funcionários de Bruxelas sobre as eleições norte-americanas. Também aqui é chocante ver até que ponto a realidade não muda para quem vive fechado no seu pequeno mundo perfeito. Alguns deles, diz o site, confessam que prefeririam uma vitória de Trump porque isso obrigaria os europeus a ter de tratar da sua segurança, libertando-se da dependência americana. Lê-se e não se acredita, a não ser se se tiver em consideração a “desactualização” do mundo de que padecem muitos habitantes de Bruxelas. Com a Rússia de um lado e a desordem mundial em crescendo do outro, a aliança transatlântica é cada vez mais necessária. É evidente que montar um quartel-general em Bruxelas não faz mal e até pode ser útil. O problema é a capacidade militar. Se a maioria dos países europeus da NATO não cumpre a meta dos dois por cento para o orçamento da defesa, fixada por consenso há um bom par de anos e apesar da insistência americana, onde arranjariam capacidade operacional (muito diferente do número de tropas, aviões ou tanques ou outra coisa qualquer, metade dos quais não estão operacionais) para deixar de depender dos EUA? Enfim, a pior coisa seria manifestar uma ambição que se sabe à partida não passar de retórica. Significaria a descredibilização total.

2.O segundo sinal de que o desentendimento domina também é bem nosso conhecido. Quando não há nada a dizer de substantivo, resta a velha ideia de que tudo se resume a um problema de comunicação. Ou seja, a Europa tem as soluções que os cidadãos querem, mas eles não sabem, porque a comunicação funciona mal. Não tem nada de mal querer informar. Mas hoje a Europa é exaustivamente escrutinada pelos órgãos de comunicação social, que é para isso que servem. As velhas ladainhas debitadas pelos funcionários europeus já são tão falhas de significado que mesmo aqueles que as tentam repetir se riem de si próprios. Em geral começam assim: a União Europeia é o maior doador de ajuda ao desenvolvimento, o maior doador de ajuda humanitária, o maior bloco comercial… Quando se chega aqui, já não há quem resista a um sorriso ou mesmo a uma gargalhada. Não é desta comunicação que a Europa precisa, mas infelizmente é ainda esta a mentalidade que continua a dominar em Bruxelas. E quem contesta é acusado de não ser um bom europeu.

3. E falta ainda a crise do euro, muito longe de estar resolvida, apesar do BCE. O Financial Times citava recentemente um relatório preparado por um conjunto de peritos sobre o futuro do euro, dizendo que, daqui a seis meses ou seis anos, a união monetária voltará a ser posta em causa por uma nova crise. As razões não são difíceis de encontrar. Como dizia recentemente António Vitorino, se houver uma Europa de ganhadores e outra de perdedores, a União não sobreviverá. Ou seja, se a convergência económica não voltar a funcionar, a sustentabilidade do euro é altamente improvável, arrastando consigo a integração europeia. O problema é que Berlim ou as demais capitais do Norte não querem sequer ouvir falar disto. As regras estão estabelecidas e as penalizações também. Os seus cidadãos podem enfurecer-se com os refugiados mas continuam a viver uma vida muito confortável, para acreditarem que tudo vai continuar mais ou menos na mesma. Alguns devem pensar que, se nos afundássemos no Atlântico ou no Mediterrâneo, seria um alívio. Ainda não perceberam que ficariam na linha de costa e podiam ser os seguintes. Esse tempo da pequena e rica Europa já passou há muito.

3. No seu último discurso na ONU, Obama avisou que as democracias enfrentam hoje uma escolha decisiva: ou se mantêm sociedades abertas ao mundo, fiéis aos seus valores e capazes de integrar os outros, lutando em conjunto por manter uma ordem internacional liberal e cooperante, ou os regimes autoritários, os novos “homens fortes” ou as correntes populistas e proteccionistas que minam os fundamentos da democracia imporão facilmente a sua desordem hobbesiana. Muita gente, lembra o Presidente, saiu da pobreza nos últimos anos, mas as desigualdades crescerem. Quando um por cento da população detém a mesma riqueza que os outros 99 por cento, não se pode falar de estabilidade. Obama está a viver um fim de mandato que não é certamente o que ele queria para o seu país e para o mundo. Na Síria, a aposta em Putin foi um desastre. Na América, o que se está a passar em Charlotte ou em Tulsa, com os (aparentes) abusos de poder da polícia contra qualquer cidadão que é suspeito apenas por ser negro, mostra que o que ele simbolizou não conseguiu mudar este terrível drama que a sociedade americana não consegue vencer. O terrorismo em Nova Iorque ajuda Trump na sua raiva contra os muçulmanos. Com um debate crucial na segunda-feira, Clinton vê subitamente dois temas que propiciam a demagogia e a xenofobia caírem em cima da campanha. Saberão as democracias resistir? É por isso que o vazio político deixado em Bratislava não é de bom agoiro.

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