Esta casa de 68 peças é “uma bênção” para o refugiado Saffa

Chama-se Better Shelter e acaba de ganhar o Design of the Year 2016, prémio atribuído pelo Museu do Design de Londres. Dá aos refugiados mais espaço e a possibilidade de trancarem a porta. Também os protege do frio e do calor.

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As casas montadas e habitadas num campo na ilha grega de Lesbos Better Shelter

Para Iman Mohammed, o pior “era a falta de privacidade” e “o tempo quente” que fazia o filho de sete anos chorar. “Ele tinha de ficar na tenda 24 horas, não havia outro sítio para ir”, conta o pai, Mohammed Hamid. “Quando nos mudámos para aqui, o choro do Qutaiba diminuiu, ficou mais tranquilo e aliviado”, diz Iman, a viver com o marido e os três filhos no campo de Al-Jamea’a, nos arredores de Bagdad.

Saffa Hameed, pai de outra família no campo, também fala do “calor duro no Verão” dentro das tendas e de Fatma, a mulher doente. “Eu tentava usar uma ventoinha para a ajudar, mas ela sentia-se terrivelmente mal.” Habituado à sua casa de “200 metros quadrados, com seis quartos e todas as condições”, a falta de espaço afligia-o. E, depois do calor, vieram as inundações, “as tendas ficaram todas destruídas”.

Quando apanharam as segundas cheias em Al-Jamea’a, os Hameed já se tinham mudado para uma Better Shelter Unit (Unidade Melhor Abrigo), ou, como são chamadas estas casas temporárias nos campos, RHU – Refugee Housing Unit (Unidade de Habitação para Refugiados). “A RHU é uma bênção para nós, aqui no deserto”, diz Saffa, citado pelo OCHA, o Gabinete para a Coordenação dos Assuntos Humanitários da ONU.

Iman e Mohammed foram ameaçados pelos jihadistas do Daesh, que lhes incendiaram a loja e os fizeram fugir da sua cidade, Taemeem, na província de Anbar. Os Hammed fugiram da mesma região, mas da cidade de Falluja. Depois do que passaram, a viver como refugiados no seu próprio país, o mínimo que se lhes deseja é uma “bênção”.

Esta “bênção” veio na forma de uma solução de habitação diferente, produzida pela Better Shelter, um “projecto de inovação humanitário” e uma empresa social (com fins lucrativos mas tendo por objectivo alcançar resultados sociais, culturais ou ambientais), uma ideia de um colectivo de designers suecos que levou anos a ser desenvolvida.

Em 2015, ganhou a forma actual: uma casa que pode ser montada em qualquer lado, como um móvel do Ikea, com 15,5 metros quadrados, estrutura de chapa metálica e tectos altos. Tem fachadas de polipropileno (tipo de plástico moldado com o calor) à prova de facada e que retardam a propagação de fogo em caso de incêndio. A porta fecha-se à chave. No tecto, há um painel solar que carrega uma lâmpada LED no interior – esta tem uma entrada USB para carregar telemóveis e pode ser usada durante quatro horas. Chega em dois pacotes de 80 quilos e é constituída por 68 peças. Está pensada para abrigar cinco pessoas e pode ser montada em quatro horas por quatro pessoas. Cada uma custa 1158 euros.

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Uma vista da casa já montada Better Shelter

A Better Shelter, produzida em parceria com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados e a Ikea Foundation (o braço humanitário da empresa), já dá chão, paredes e tecto a milhares de pessoas na Etiópia, Iraque, Grécia, Djibuti e Níger, acaba de chegar ao Chade e irá em breve para o Botswana e Bangladesh. Em todos esses lugares, está em campos geridos pelo ACNUR, mas os Médicos Sem Fronteiras também já usam estas unidades como hospitais no Nepal.

Acaba de ganhar o Design of the Year 2016, um prémio atribuído anualmente pelo Museu do Design de Londres. “Inovador, humanitário e posto em prática, o projecto Better Shelter tem tudo o que um Design of the Year devia ter”, justificou Jana Scholze, curadora e professora, que integrou o júri de um prémio que já foi conquistado pela Tocha Olímpica ou pelo poster Hope da campanha presidencial de Barack Obama.

Mundo estranho

Faz sentido uma habitação para refugiados ganhar prémios de design ou integrar a colecção permanente do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, como acontece com esta desde 2016? O que diriam Saffa, Iman ou Mohammed, se soubessem que há uma casa como a deles no MoMa? “É de doidos. Só mostra como o mundo é um lugar estranho”, diz Märta Terne, responsável de Marketing e Comunicação da empresa.

A Better Shelter esteve exposta no MoMa até 22 de Janeiro, na mostra Insecurities: Tracing Displacement and Shelter. Até 19 de Fevereiro pode ser vista no Museu do Design de Londres, ao lado dos outros premiados. “Estive em Nova Iorque para a inauguração e discuti muito essa estranheza com o Sean [Anderson, o curador]. Vi a casa a chegar, estavam a mexer nela com tanto cuidado, tinham luvas brancas e nem toda a gente lhe podia tocar – porque assim que entra ali é uma obra de arte”, conta Märta, ao telefone a partir de Estocolmo. E não, Märta nem consegue imaginar o que pensariam disso os refugiados que vivem nestas casas.

Ninguém foge do seu país a pensar que não regressa. Vida de refugiado não devia bem ser vida, mas é. Um refugiado vive em média 17 anos num campo. Daadad, no Quénia, que tem estado a ser desmantelado, foi o maior campo de refugiados do mundo e cresceu ao longo de quase 35 anos. Os primeiros somalis que lá chegaram foram avós em Daabad. Zaatari, na Jordânia, nasceu em Julho de 2012 e no ano seguinte tinha 120 mil sírios, o que fazia dele o segundo maior campo de refugiados do mundo e a quinta maior cidade jordana.

Actualmente, há pelo menos 65,3 milhões de pessoas no mundo que foram forçadas a fugir das suas casas, uma crise de dimensões sem precedentes. A Better Shelter “lida com um dos assuntos definidores do momento”, diz Jana Scholze, do júri do prémio de Londres. “Ao juntar ao design uma estrutura segura e uma rede de distribuição, este projecto torna-se relevante e até optimista. Mostra o poder do design na resposta às condições em que nos encontramos e na sua capacidade de as transformar.”

Os habitantes

A Better Shelter agradece a divulgação e os elogios, “mas as opiniões com mais valor são as dos utilizadores, de quem vive nas casas, e dos trabalhadores da ONU e das agências que as ajudam”, diz Märta.

O grupo de designers responsável é encabeçado por Johan Karlsson, que é também director-geral interino da empresa e co-fundador. “Tudo começou com estes designers, bem-intencionados mas um pouco ingénuos. Pensaram: 'Como é que ainda se usam tendas, as mesmas tendas de há 100 anos? Deve haver uma forma melhor de abrigar milhões de refugiados’”, descreve Märta. A partir daí foi investigar os conceitos existentes, experimentar e testar muitas soluções de formatos e materiais.

“Chegámos a contactar a Ikea, mas eles disseram-nos que estavam focados nos interiores, não nas estruturas de habitação. Depois, o Johan entrou em contacto com o Lennart Ekmark, antigo designer da Ikea, uma espécie de guru, que apoiou o projecto e ajudou a fazer a ponte com a empresa e depois com a Fundação Ikea, que, por sua vez, já colaborava com o ACNUR. A sorte misturada com um bom protótipo permitiu lançar a ideia em 2010”, recorda Märta. Três anos depois, os primeiros exemplares chegavam à Etópia.

A colaboração com a agência da ONU, diz Märta, “foi fundamental”. “Eles conheciam os critérios e exigências com que trabalham, sabiam do que precisavam.” Mas nada substitui a experiência dos refugiados. “As primeiras famílias foram essenciais, do que gostaram, do que não gostaram.” Por exemplo, os primeiros protótipos tinham duas portas, “entrava mais pó e aumentava a insegurança”. O chão, também de polipropileno, “é como um oleado mais grosso e resistente”, ali não fazia sentido, “eles preferiam usar o chão natural de lama seca, que era mais fresco, e então vendiam o plástico para fazer algum dinheiro no mercado local”. As janelas também não eram as mais lógicas: “Na Escandinávia, toda a gente quer janelas enormes, a luz é pouca, ali era muita, ficava mais quente.”

Em 2015, chegou-se ao primeiro modelo industrializado e foi então que a Better Shelter se começou a espalhar pelo mundo, em plena crise de refugiados. A empresa tem um acordo com o ACNUR para entregar 30 mil casas e 16 mil já foram enviadas. Agora que estas casas estão em lugares tão diferentes como o Djibuti, o Iraque ou a Grécia “é que o teste real acontece”, diz Märta. Por isso, ainda este ano será lançado um novo modelo melhorado.

Cidades do futuro?

Alguns dos elementos destas casas, como a estrutura, estão pensados para durar pelo menos dez anos. “No Iraque, já há gente a adaptá-la para habitações de longo prazo. Usam a estrutura e depois tijolos, sabemos que noutros lugares o mesmo está a ser feito com bambu.”

Privacidade, controlo sobre a meteorologia, segurança é o que esta habitação oferece. “Uma certa esperança”, acrescenta Anatxu Zabalbeascoa, historiadora de arte, num artigo assinado no El País. “Mas a sua entrada num museu confirma-a como uma excepção, não como regra para atenuar os problemas dos refugiados, e isso é o pior.”

“Estamos a fazer trabalho humanitário como há 70 anos, nada mudou desde a II Guerra”, queixava-se numa entrevista à revista de arquitectura e design Dezeen, no fim de 2015, Kilian Tobias Kleinschmidt, o alemão que o PÚBLICO conheceu em Zaatari, quando este coordenava o campo.

Em 2013, Kilian estava tentar convencer a ONU a legalizar as puxadas de electricidade feitas pelos refugiados, cobrando pequenas quantias a quem pudesse pagar. “Estas são as cidades de amanhã”, disse à Deezen, quando deixou a Jordânia. “A média de tempo que se fica num campo é 17 anos. É uma geração. Vamos olhar para estes lugares como cidades.” Märta conhece as ideias de Kilian e apenas lamenta que os países onde estes campos existem só permitam que neles sejam erguidas habitações temporárias.

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