Espanha e a periferia da periferia

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1.Recentemente, num debate sobre as relações entre Portugal e Espanha, alguém lembrou um pormenor de enorme significado. É raro encontrar em Portugal, entre universidades e think-tanks, estudos dignos desse nome sobre esta controversa relação que partilhamos com a Espanha nestes anos que já leva a democracia. O facto é, talvez, a melhor prova de que, mesmo partilhando as mesmas alianças desde a democratização, se mantém uma dificuldade da nossa parte perante este “convívio” ibérico que a geografia nos atribuiu. Há estudos sectoriais em abundância, mas não há uma visão global que dê sentido a esta relação. A Espanha volta agora a estar em foco por causa da banca portuguesa. A crise levou Madrid a tentar distanciar-se de um país resgatado, mas isso foi antes de ter compreendido que precisava de um “resgate bancário” sem uma “troika” visível mas com um grande pacote financeiro.

Agora, que chegou também para nós, tarde e a más horas, a crise de um sistema financeiro ainda afectado por um nível muito elevado de imparidades (Espanha e Irlanda trataram de resolver o problema no início da crise e a Itália está a resolvê-lo agora), as relações com Espanha voltaram à baila sob a forma de excessivo controlo sobre a banca portuguesa. O sinal foi dado pelo primeiro-ministro e pelo Presidente da República (que foi almoçar à Zarzuela logo após a sua posse para manifestar ao rei esta preocupação). O aviso dirige-se sobretudo à venda do Novo Banco, depois de o Santander (um gigante mundial) ter ficado com o que restou do BANIF. Os cálculos estão mais ou menos feitos: a banca espanhola já detém cerca de 40% dos nossos bancos e chegaria aos 60% com o Novo Banco, um valor que é considerado por muita gente, e não só o Governo, como realmente excessivo. Neste debate nada é simples, mas nada se resolve reduzindo o problema a um antiespanholismo caduco. Há razões de natureza económica mas também geopolítica que não dispensam uma estratégia de longo prazo sobre o nosso lugar na Europa. António Costa quer resolver o problema das imparidades, que impede que as políticas do BCE cheguem à economia real, o mais rapidamente possível. Muita gente se interroga por que razão o anterior Governo (e a troika) não se ocupou a sério desta questão. A forma como o BES implodiu revelou uma enorme falta de transparência e de controlo sobre o sistema bancário. A credibilidade do Governador do Banco de Portugal já passou qualquer prazo de validade. Os verdadeiros problemas do Governo não são aqueles que marcaram “uma semana horrível”. São a banca e um crescimento fraco da economia mundial, europeia e, consequentemente, portuguesa.

2.Vale a pena fazer uma breve viagem sobre o nosso relacionamento com o país vizinho desde que a democracia se tornou no primeiro grande momento em que seria possível olhar as coisas de outro modo, sobretudo graças ao enquadramento europeu, afastando os velhos fantasmas e oferecendo aos dois países, porventura, os melhores anos da sua história recente. Quando entrámos na Comunidade, a palavra de ordem com que Portugal definia esse reencontro falava por si: chegar a Madrid via Bruxelas. Fazia sentido. Mas era absolutamente impossível travar a integração das duas economias, beneficiando aliás os dois países. A Espanha tornou-se rapidamente no nosso maior parceiro comercial. As coisas corriam bem na Europa, as economias cresciam e os sucessivos Pacotes Delors destinados aos países “da coesão” (os dois ibéricos, a Irlanda e a Grécia) foram a sólida “frente comum” para negociar fundos comunitários. Mesmo assim, as reservas existiam noutros domínios. Em 1996, quando Portugal participou na missão militar da NATO na Bósnia, as autoridades portuguesas tiveram de levar em consideração a “sensibilidade” das Forças Armadas, que não queriam ficar sob comando espanhol. Ficaram sob comando britânico, mesmo que numa zona mais perigosa. Depois, quando a guerra no Iraque provocou uma profunda crise transatlântica, assistimos com alguma surpresa à decisão de José María Aznar de alinhar a Espanha com os EUA, abandonando a sua tradicional reserva e deixando-nos “entalados” num dos domínios de diferenciação que prevaleceram na nossa história mais recente. Aznar esteve com Bush e Blair nos Açores e Durão Barroso conseguiu apenas ser o anfitrião (na foto). Essa crise passou. A economia espanhola deu um poderoso salto em frente que não conseguimos acompanhar. As coisas voltaram a tornar-se mais difíceis com a crise financeira que se abateu sobre a Europa, para se transformar rapidamente numa crise da própria integração europeia. A economia espanhola recuperou muito depressa, mas a Catalunha e o risco de desagregação do país são problemas muito sérios. Não sabemos que Europa vai sair desta crise, apenas que não será a mesma. Depois de quatro anos sem política externa e política europeia, temos de voltar a pensar o que nos convém neste ainda incerto enquadramento europeu. As relações com os EUA e a relação transatlântica voltam a fazer sentido. Sempre preferimos uma Europa virada para o Atlântico e aliada da América. Como dizia recentemente António Vitorino numa conferência sobre a comunidade transatlântica no IDN, o Brexit é hoje a maior ameaça a essa Europa e, consequentemente, ao interesse português. Uma Europa despojada do Reino Unido acabaria por reorganizar-se em redor de um só pólo de poder, a Alemanha, enfraquecendo ainda mais a França e atirando-nos para a periferia da periferia.

3. Entretanto, há mais más notícias europeias. A Alemanha parece ter decidido ignorar (ainda mais) os seus parceiros europeus, acentuando um caminho “unilateral” nada animador. Primeiro, o seu ministro das Finanças e o chefe do Bundesbank resolveram atacar aberta e frontalmente o BCE e o seu presidente, Mario Draghi, pondo em causa a sua política de incentivo ao crescimento através de taxas de juro baixas e da injecção de liquidez na economia. Esta política afecta as poupanças dos alemães incluindo as que amealharam para a velhice, num país cada vez mais envelhecido. Wolfgang Schäuble vai ao ponto de o responsabilizar pela subida do Alternativa para a Alemanha nas eleições regionais. Draghi preocupa-se em primeiro lugar com o risco de deflação, que ainda não desapareceu, e com a estagnação económica, mostrando que a independência estatutária do BCE não existe apenas para agradar à Alemanha e à sua economia. Segundo episódio pouco edificante: depois de ter tido a coragem de defender a chegada de um milhão de refugiados (incluindo a necessidade de combater o envelhecimento), a chanceler viu-se alvo de uma guerra interna contra a sua política. Passou ao modo seguinte: fazer tudo para encontrar uma solução que aliviasse essa pressão. Para sermos justos, a solução que encontrou com a Turquia resultou da falta de abertura dos seus pares para “partilhar o fardo”. Prometeu a Erdogan tudo e mais alguma coisa, incluindo abandonar a sua oposição de sempre à adesão turca à União. Ignorou a deriva antidemocrática do Presidente turco. Ultrapassou uma barreira que muita gente juraria que nunca ultrapassaria quando aceitou que a Justiça avaliasse se havia crime no comportamento de um comediante alemão que resolveu apresentar na televisão um poema (absolutamente grosseiro, é verdade) sobre o Presidente turco. Erdogan tinha exigido que ele fosse castigado, à boa moda do tratamento que usa contra a imprensa do seu país. Há uma lei alemã que proíbe o insulto a líderes estrangeiros, mas que confere ao Governo a decisão sobre um eventual processo. Merkel seguiu um caminho duvidoso, ao permitir a abertura de um processo. Infelizmente, Berlim está a adoptar um comportamento cada vez mais “unilateral” que começa a gerar anticorpos nos seus parceiros, desde a energia aos refugiados, passando pelo BCE ou pelo terceiro pilar da União Bancária. E as coisas não vão melhorar. Merkel tem eleições no Outono de 2017 e Hollande, que nunca esteve tão enfraquecido, na Primavera do mesmo ano. 2017, disse também Vitorino, será um ano de total imobilismo. Entretanto, a economia corre mal para toda a gente e os Estados Unidos estão enredados numa crise política tremenda de que ninguém suspeitava há meia dúzia de meses.

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