Erdogan precisa de inimigos mas também precisa de dinheiro

Nova escalada nas tensões entre a Turquia e a Alemanha. Ancara promete que “a resposta necessária” virá.

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O acordo sobre os refugiados foi negociado por Angela Merkel YANNIS BEHRAKIS/REUTERS

Para alguém que começou por querer pôr em prática uma política externa descrita como “sem inimigos”, Recep Tayyip Erdogan parece aproximar-se cada vez mais do momento em que não lhe restarão aliados. O todo-poderoso Presidente não deixou de precisar de amigos, mas alimenta sucessivas discórdias com aliados tradicionais.

É assim, acredita, que pode sobreviver no poder, conservando a sua base de apoio, cada vez mais curta (em Abril, venceu o referendo à reforma constitucional que lhe dará poderes inéditos por 51%) mas extremamente dedicada e sensível à narrativa do “inimigo externo que não quer uma Turquia forte e orgulhosa”, a potência que é por direito. São os “seis milhões” que os media turcos dizem ter participado nas comemorações do 15 de Julho em iniciativas por todo o país — incluindo “vigílias pela democracia”.

Desde o fracasso da tentativa de golpe de Estado de há um ano que Erdogan dispara para quase todos os lados. A crise com a Alemanha acaba de subir uns quantos degraus, mas já é antiga; tal como as crises com a Áustria ou a Holanda; ou as tensões com a Grécia, alimentadas quase quotidianamente com navios e aviões a passarem onde não devem. Ao mesmo tempo, nem o novo inquilino da Casa Branca parece muito interessado em recuperar a relação privilegiada que Washington e Ancara costumavam ter.

Entretanto, o chefe de Estado turco reaproximou-se da Rússia, aproveitando a porta aberta pelo telefonema de Vladimir Putin na noite do golpe — horas em que Erdogan esperava telefonemas de membros da União Europeia e da NATO que tardaram ou nem chegaram. E assim, um dos mais importantes membros da Aliança Atlântica prepara-se, por exemplo, para comprar sistemas de defesa aérea à Rússia.

As detenções de membros de ONG internacionais, incluindo o alemão Peter Steudtner, desencadearam agora uma resposta dura de Berlim, que decidiu mudar de política em relação ao Governo turco e avisou os seus cidadãos que ao viajarem para a Turquia se arriscam a ser detidos e acusados de terrorismo, como acaba de acontecer com os activistas. A resposta de Ancara foi mista, com o ministro dos Negócios Estrangeiros e o porta-voz de Erdogan a dizerem que a Alemanha e a Turquia “precisam de se concentrar nos objectivos a longo prazo”, ao mesmo tempo que qualificavam como “inaceitáveis” as declarações de Sigmar Gabriel e acusavam Berlim de “interferência directa na Justiça turca”.

As acusações, formalizadas na segunda-feira, acontecem dias depois de a Turquia ter proibido a entrada de deputados alemães que pretendiam visitar militares do seu país ali estacionados (entretanto, recolocados na Jordânia). Antes, Berlim impedira Erdogan de se encontrar com a comunidade turca na Alemanha à margem da cimeira do G20 — a ideia do Presidente era celebrar o primeiro aniversário da tentativa de golpe.

Tal como qualquer opositor ou crítico do Presidente passou a ser tratado como “terrorista” ligado ao religioso Fethullah Gülen, que o Governo diz estar por trás do golpe, também os países que criticam a purga cega lançada por Erdogan no pós-golpe ou a reforma da Constituição são descritos como estando a dar “abrigo ao PKK [guerrilha curda] e aos terroristas da FETO [organização de Gülen] no seu próprio território”, acusação várias vezes feita à Alemanha e repetida agora pelo chefe da diplomacia, Mevlut Cavusoglu. De acordo com o jornal alemão Die Zeit, as autoridades turcas até já enviaram a Berlim a lista das 68 empresas alemães que acusam de ligações a Gülen.

Cavusoglu também ameaça Berlim com “a resposta necessária” — a ser divulgada quando se justificar. Ancara fez ameaças idênticas a países europeus que proibiram comícios pró-Erdogan antes do referendo e até agora nada aconteceu. Erdogan bem pode dizer, como na semana passada, que “seria um alívio ver o processo de adesão à UE” congelado para sempre. Mas precisa do dinheiro europeu, o dos fundos pré-adesão, mais o que foi combinado no acordo sobre os refugiados (ao abrigo do qual Ancara impede milhares de refugiados de chegarem às costas europeias). Tal como Bruxelas precisa da Turquia para cumprir este acordo.

E por mais que Erdogan precise de inimigos, não vai usar a bomba atómica — rasgar o acordo negociado por Angela Merkel — e voltar a permitir os barcos de refugiados de seguirem para a Europa. Depois disso, sabe-o bem, a UE pode mesmo tomar medidas que prejudicariam muito a economia turca, já em risco com a desvalorização da lira e as quebras no turismo e no investimento estrangeiro.

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