Enemies of the people

Há uns meses, no rescaldo imediato do referendo sobre o Brexit publiquei algumas reflexões. Achei, na altura, que era importante partilhar algumas considerações sobre o que poderia acontecer em consequência do resultado do referendo. Apresentei-me, no momento, como “europeísta convicto, anglófono convicto e liberal convicto”. Hoje devo acrescentar algo mais: sou jurista, agnóstico e antidogmático.

Desde aquele dia muita água passou debaixo da ponte e o mundo mudou radicalmente. Os meus wildest nightmares começaram a ganhar corpo. Trump ganhou e, em duas semanas, começou a cumprir as suas promessas eleitorais. O mundo está, por isso, menos seguro. Mas também mais acordado, ainda que o despertar de cada dia seja a descoberta alegre que o botão nuclear ainda não foi “trumpeado”.

O mundo está menos seguro e vai ficar cada vez menos seguro no futuro próximo e, enquanto anglófono convicto, desgosta-me profundamente que a fonte desta insegurança e instabilidade seja anglófona. E, enquanto jurista, desgosta-me ainda mais profundamente ler tweets e notícias sobre inimigos do povo e pseudo-juízes oriundos da imprensa britânica e do Presidente dos Estados Unidos.

Sou jurista. Não sou juiz, nem procurador, nem advogado. Simplesmente professor e investigador.

Respeito, acima de tudo, dois princípios fundamentais sem os quais é impossível a existência de uma sociedade justa. São eles os princípios da separação de poderes e o princípio do estado de direito. O primeiro resulta da evidente necessidade de separar claramente as três funções do poder, de forma a que se limitem mutuamente, impedindo a tirania decorrente do poder absoluto. As regras desta separação bem como os procedimentos de limitação e controlo decorrem do segundo princípio, que impõe a observância do Direito, na feliz expressão inglesa de Rule of Law, que poderia traduzir-se também como o império ou domínio do Direito.

O maior perigo da democracia, que continua, como afirmou Churchill, a ser a menos má de todas as formas de governo que se vão experimentando, é o de poder proporcionar o aparecimento de tiranias. Espantosamente, em consequência dos sistemas eleitorais, essas tiranias podem até surgir em resultado de voto minoritário ou de abstenções elevadas. Perversidades do sistema… Mas, principalmente quando o voto na solução de tirania emergente é maioritário, é muito fácil esquecer que os outros, que não votaram ou votaram contra, são pessoas, com dignidade e direitos tão legítimos como os dos vencedores. E mais fácil é recusar-lhes essa dignidade e esses direitos quando a maioria legitima a xenofobia, a misoginia e o racismo.

Certo é que, em democracia, quando a ameaça de tirania surge, existe apenas um mecanismo capaz de se opor à injustiça facilmente imposta pelo executivo e legislativo atuando em conjunto: a autoridade judicial, no seu todo, incluindo também todos os seus protagonistas – advogados, procuradores e juízes.

Os juízes, procuradores e advogados, os tribunais, a autoridade judicial no seu todo, estão neste momento na ribalta por serem, na realidade, a última rácio contra o abuso, a ilegalidade, a inconstitucionalidade e a injustiça. Ao cumprir a sua função, fazem-no com a humildade e coragem que lhes é característica. Porque essa é a sua função. Porque esse é o seu destino e razão de ser.

Os tiranos, esses, fazem o possível para os controlar. Inimigos do povo, dizem depois de ganhar votações com “maiorias” de votantes, como se o povo não incluísse também a oposição e os abstencionistas e os que não têm direito a voto. Pseudo-juízes, dizem, com vitórias obtidas por perversões do sistema eleitoral. E, muitas vezes, depois de ganhar votações, como ficou provado na sentença do julgamento de Nuremberga de 1 de Outubro de 1946, sobre os crimes de guerra alemães durante a segunda guerra mundial, “…os tribunais foram sujeitos a controlo. Os juízes foram demitidos por razões políticas ou raciais. Foram espiados e pressionados pelo partido nazi ou foram despedidos. Quando o Supremo Tribunal absolveu três de quatro réus acusados de crime no incêndio do Reichstag, a sua jurisdição em processos de traição foi retirada e atribuída ao “Tribunal do Povo” composto por dois juízes e cinco membros do partido (nacional-socialista). Foram estabelecidos tribunais especiais para julgar crimes políticos e os seus juízes eram necessariamente membros do partido. Em 1942 foram enviadas as “cartas de juízes” dando instruções que deveriam ser seguidas nos julgamentos” pode ler-se no relatório do Justice Birkett.

Ainda não chegamos ao extremo de forçar os Tribunais a ser instrumentos de tirania. Ou melhor, ainda não voltamos a esse ponto. Mas estamos hoje mais próximos que nos últimos 70 anos. No Reino Unido é Take back control. Em França é Au nom du peuple. Nos Estados Unidos é America First. Há 80 anos na Alemanha era Aryan Lebensraum. É, por isso, necessário homenagear homens e mulheres que, na autoridade judicial, cumprem o seu dever de fazer respeitar o Estado de Direito, levando justiça a quem não a tem. Homens e mulheres, geralmente anónimos, mas que, por vezes, por contingências da vida, saltam para as primeiras páginas da Imprensa. A esses, mas também a todos os outros, a minha homenagem. A minha gratidão. E a minha esperança.

Professor Catedrático, Universidade Portucalense

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