Em vez de festa, pessimismo

A primeira capa de 2016 da revista The Economist é dedicada ao Brasil, que este ano acolhe os primeiros Jogos Olímpicos da América do Sul. Mas o retrato é desastroso.

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Em 2009, a influente revista The Economist dedicou a sua capa a uma imagem do Cristo Redentor descolando do Corcovado como um foguetão. O Rio de Janeiro tinha acabado de vencer a disputa para sediar os Jogos Olímpicos, os primeiros na América do Sul, e o título da revista era “O Brasil levanta voo” (“Brazil takes off”). O Brasil era “a grande história de sucesso da América Latina”, melhor posicionada do que as restantes economias emergentes dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) para conquistar o mundo, profetizava a Economist. “As previsões variam, mas, algures na década a seguir a 2014, é provável que o Brasil se torne na quinta maior economia mundial, ultrapassando o Reino Unido e a França.” E isto era só o segundo parágrafo do artigo.

A Economist também escolheu o Brasil como tema da sua primeira capa de 2016, mas o tom não é mais o mesmo. O clima no país devia ser de euforia devido à realização das Olimpíadas em Agosto, mas, em vez disso, a maior economia da América Latina enfrenta “uma década perdida”, diz a revista. A capa mostra uma fotografia da Presidente Dilma Rousseff, cabisbaixa, sob o título “A queda do Brasil”. A revista faz um balanço da crise política e económica que paralisou o país no último ano: queda do PIB, redução da nota de crédito do Brasil por duas agências de rating, inflação elevada, demissão do ministro das Finanças em menos de um ano à frente da pasta, o escândalo de corrupção na Petrobrás que atinge boa parte da classe política que gere os destinos do país em Brasília, a incerteza do impeachment (destituição) da Presidente.

Mas a expectativa de saída da crise nos próximos anos também é pessimista: “Os anos 2010 vão ser quase de certeza mais uma década perdida; o PIB per capita não vai recuperar tão cedo”, escreve a Economist. “Vai demorar algum tempo até que um Presidente consiga alcançar o orgulho com que Lula ergueu o seu troféu olímpico”. Lula da Silva era o Presidente do Brasil quando o Rio de Janeiro foi escolhido para acolher os Jogos Olímpicos, batendo Chicago, Tóquio e Madrid; na altura, Lula disse que a robustez da economia brasileira e o seu bom desempenho frente à crise mundial de 2008 eram boas garantias de que o Rio estaria pronto para sediar o evento. 

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“O Brasil levanta voo”, a capa de 2009

A análise da Economist repercutiu na imprensa brasileira, sem choque nem contestação.

“Para quem está acompanhando de perto o Brasil, a matéria não trouxe nada que nós não soubéssemos. O que a Economist fez foi reverberar uma análise que é consensual entre os economistas sérios. Mas ela reflecte, de maneira geral, o desencanto dos investidores estrangeiros com o país”, diz ao PÚBLICO o economista Alexandre Schwartsman, director de Assuntos Internacionais no Banco Central brasileiro durante o primeiro governo de Lula da Silva.

Para Vladimir Safatle, professor de filosofia na Universidade de S. Paulo, o artigo “demonstra muito claramente como o Brasil deixou de ser uma espécie de galinha dos ovos de ouro do pensamento liberal mundial”. “Durante um certo tempo, a economia brasileira era vista como uma das mais sólidas para investimentos internacionais, entre outras coisas porque ela teria estabilidade política, clareza de estruturas jurídicas e um certo crescimento contínuo. Prometeram aos brasileiros que nós seríamos a quinta economia do mundo antes de 2020. E agora ficou muito claro como nada disso era real, nada disso era concreto. A gente está num país onde você tem actualmente problemas de instabilidade política muito fortes, problemas de crescimento económico, de retracção económica, absolutamente evidentes – a maior retracção económica da história brasileira desde 1980.”

“Dois anos consecutivos de queda no PIB é uma coisa que não se vê no Brasil desde 1931”, diz Alexandre Schwartsman.

“Não é que o país fosse imune a recessões; o país passou por alguns períodos recessivos: em 99, quando desvalorizou a moeda; em 2003, na transição política do Governo Fernando Henrique Cardoso para o Governo Lula; passou também por uma recessão quando veio a crise internacional de 2008-2009. Recessões, a gente está acostumado. Agora, a seguir a cada recessão no Brasil, a gente assistiu a uma retomada muito forte. 1999 foi um ano ruim? 2000 foi um ano excelente. 2003 foi ruim? 2004 foi um ano muito bom. 2009 foi ruim? 2010 foi o melhor ano de crescimento em muitos anos. A gente passava por recessões mas recuperava muito rápido. O Brasil foi dos primeiros países a sair da crise de 2008-9”, explica o economista. “Agora a perspectiva é de uma retomada muito lenta de crescimento num país que tem demandas sociais imensas. A gente olha isso e fica um tanto desesperançado.”

Como a Grécia

As memórias dos tempos em que o Brasil era aplaudido na cena internacional pelo seu crescimento sustentado e pela ascensão social de 42 milhões de brasileiros que até então viviam na pobreza ainda estão frescas. O Brasil foi celebrado como uma história de sucesso por mostrar, para o mundo inteiro, que um Governo de esquerda “responsável”, que aceita as regras do mercado e dispensa o radicalismo, podia ser bem-sucedido. Essa boa imagem internacional serviu aos Governos de Lula e Dilma para contrariar as críticas da imprensa nacional. “Era importante para o Governo brasileiro falar: vejam como a imprensa internacional é mais precisa do que a imprensa nacional”, nota Vladimir Safatle.

E agora? “As mesmas pessoas que há cinco anos, quando a Economist fez uma capa dizendo ‘O Brasil está subindo’, falavam: ‘Vejam como até a Economist reconhece os grandes feitos do nosso Governo’, agora saem na imprensa dizendo: ‘A Economist é uma revista liberal, não deve ser levada a sério’, coisas dessa natureza. É um clássico”, ri-se Safatle.

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Uma favela do Rio de Janeiro. Muitos economistas têm apontado que os problemas do Brasil começaram uma série de erros cometidos no primeiro mandato de Dilma Nelson Garrido

A “queda” do Brasil foi abrupta, assinala Schwartsman. A crise económica parece estar a produzir-se há algum tempo, mas as teorias sobre as suas causas e origens variam. A própria Dilma fez um raro mea culpa, quando em Agosto do ano passado admitiu ter subestimado a gravidade da crise económica no anterior mandato. Isso, depois de ter feito uma campanha eleitoral “dizendo que o país não tinha problema nenhum”, lembra o economista.

“Uma coisa é certa: a economia brasileira está em completa paralisia. Uma paralisia que o Governo ainda não percebeu o tamanho”, diz Vladimir Safatle. “Eu, que tenho 42 anos, dificilmente lembro de alguma coisa que vai ser tão dura quanto essa crise. Agora, qual a razão da crise? Essa é uma discussão que eu realmente gostaria de ver mais presente na imprensa nacional e internacional.”

O filósofo critica o facto de a revista The Economist se limitar a aplicar o seu “receituário universal” sempre que um país entra em recessão, independentemente das especificidades do mesmo. O seu diagnóstico da crise brasileira: o Estado é gastador, os serviços sociais são demasiado dispendiosos, a economia é pouco competitiva. A sua cura: austeridade.

“A narrativa é mais ou menos a seguinte: durante esses dez anos de lulismo, o Governo brasileiro gastou mais do que devia, foi incapaz de reformar o seu sistema de pensões e coisas dessa natureza, foi incapaz de constituir uma economia com um padrão de competitividade internacional, e agora entra em colapso. É inacreditável como eles [The Economist] fazem a mesma análise para qualquer coisa. Seja Grécia, seja Portugal, seja Espanha, seja qualquer país. Há que perguntar se eles realmente estão analisando os países ou se têm um receituário pronto que tentam impor goela abaixo em qualquer circunstância”, diz Vladimir Safatle.

Muitos economistas têm apontado que os problemas do Brasil começaram uma série de erros cometidos no primeiro mandato de Dilma. A visão da Economist não é diferente: Dilma surge como o único rosto da crise. “É uma Presidente que não delega. É uma Presidente que micro-gerencia tudo. A orientação de política económica não veio do ministro das Finanças, veio da Presidente”, diz Alexandre Schwartsman. “Ela é de facto a cara dessa crise.”

Políticas de estímulo ao crédito, controlo de preços, nomeadamente no sector eléctrico e combustíveis, isenções fiscais e medidas proteccionistas para determinadas indústrias nacionais, transferências colossais de fundos públicos para empréstimos a grandes empresas são algumas das medidas adoptadas no primeiro Governo de Dilma para tentar segurar a economia brasileira face a uma conjuntura internacional cada vez mais desfavorável. “A gente deu passos para trás, achando que tinha uma visão ideológica de que o Governo sabia mais do que o mercado. As condições internacionais não eram mais tão favoráveis, mas estavam longe de serem ruins. E teve um Governo que basicamente pisou na bola [cometeu um erro ou equívoco].”

Um país bipolar

Nem todos os analistas estão dispostos a colocar a culpa inteira em Dilma. “Essa crise não é apenas uma consequência dos erros do primeiro Governo de Dilma – que aumentou o endividamento público e desarrumou as contas públicas”, diz Aldo Fornazieri, cientista político e director académico da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

“O país tem uma estrutura de gastos constitucionalizados e legalizados que o orçamento não comporta. O desarranjo fiscal do país é em parte decorrente dessa estrutura de gastos públicos, como a segurança social, a educação, a saúde e assim por diante. Para rearrumar a casa, o Brasil precisaria de fazer reformas estruturais profundas”, conclui Fornazieri.

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Construção da Aldeia Olímpica do Rio de Janeiro. Em 2009, o Brasil era para a Economist “a grande história de sucesso da América Latina” TASSO MARCELO/AFP

Como a Economist também nota no seu artigo, a Constituição brasileira limita a flexibilidade do orçamento público porque ela impõe gastos obrigatórios para certos sectores, como educação e saúde. “O Brasil vem numa trajectória de aumento da despesa há pelo menos 20 anos”, diz Alexandre Schwartsman. “Boa parte desses gastos está ligada à segurança social. Apesar de ser um país jovem, o Brasil é um país que gasta muito com aposentadorias e pensões. Tem brasileiros se aposentando um pouco mais velhos do que eu, com 52, 54 anos. A expectativa é que essas pessoas vivam mais 25, 30 anos. Essa conta não fecha. Então você precisa mexer na segurança social e isso implica mudar a Constituição. Nós temos um orçamento no qual o Governo federal consegue mexer em menos de 10% dos gastos. A gente precisa de tratar da questão da vinculação orçamental. Retomar o orçamento como um instrumento de politicas públicas. Que não é. Ele basicamente reproduz as prioridades que foram definidas pelos legisladores há quase 30 anos. A gente precisa retomar a flexibilidade orçamental no Brasil. Boa parte disso requer mudança constitucional.” Essa é também a tese da Economist.

Ainda que o Brasil possa sair mal na última edição da revista britânica, há quem diga que a capa de 2009, com o Redentor nas alturas rumo a um futuro radioso, foi pior para o egocentrismo brasileiro.

“O Brasil tem um tipo de patologia social que é muito parecido com a Rússia”, diz Vladimir Safatle. “Talvez seja próprio de países muito grandes. Ou nós achamos que somos a nova Roma do mundo, a grande promessa mundial, ou achamos que somos o que há de pior no mundo. O Brasil tem um transtorno bipolar impressionante. Há cinco anos nós acreditávamos que seríamos o país do futuro, que seríamos a quinta economia do mundo, que teríamos um papel global a desempenhar no interior da política geo-económica, que teríamos assento no Conselho de Segurança da ONU. E hoje achamos que somos o maior fracasso. Eu diria que nem uma coisa nem outra é verdadeira.”

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O Brasil era aplaudido na cena internacional pelo seu crescimento sustentado e pela ascensão social de 42 milhões de brasileiros PILAR OLIVARES/Reuters
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