Em greve de fome, uma pessoa pode resistir 50 a 75 dias, no máximo

“Os primeiros dias são os piores”, recorda Isabel do Carmo. O activista angolano, Luaty Beirão, cumpre este sábado o 27.º dia sem ingerir alimentos.

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Lauty Beirão está em greve de fome, "o último recurso" Diogo Baptista

Quanto tempo pode resistir uma pessoa em greve de fome?  A resistência depende de uma série de factores, como o estado nutricional, mas em geral, e “tendo em conta o que está descrito em vários estudos, no máximo será possível aguentar entre 50 a 75 dias”, explica Davide Carvalho, endocrinologista e professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. “Os indivíduos magros começam logo a perder tecido muscular”, observa.

Sobreviver sem alimentos depende da reserva nutricional da pessoa, mas também da presença ou ausência de doenças associadas (diabetes, insuficiência renal, neoplasias) e da ingestão de líquidos, mesmo que em pequenas quantidades (“a morte por desidratação é muito mais rápida”).

As alterações mais graves devem-se à falta de potássio, magnésio e fosfato, mas o sódio é também extremamente importante porque mantém “a pressão arterial que permite a circulação do sangue e a chegada às células dos nutrientes provenientes da destruição do tecido adiposo e muscular”, explica o director do Serviço de Endocrinologia do Centro Hospitalar S. João (Porto).“A água e o sal são vitais para a manutenção da circulação”, frisa.

“Há um elemento de que não temos reservas no organismo que é fulcral: o potássio”, sublinha Isabel do Carmo, a médica especialista em endocrinologia e nutriçã que passou pela experiência de várias greves de fome, uma das quais se prolongou por 30 dias, em 1978. “Conseguimos ir buscar outros elementos, como o cálcio ou o ferro, às reservas do organismo, tal como acontece com a glicose, que o fígado é capaz de produzir sozinho a partir das gorduras”, mas o potássio não, justifica. 

Fundadora das Brigadas Revolucionárias e do PRP (Partido Revolucionário do Proletariado), a médica, que estava presa preventivamente em Custóias quando fez a prolongada greve de fome, lutava então pela publicação da lei da amnistia.”A greve de fome é o último recurso. É um sacrifício brutal e um risco muito grande”, enfatiza.

O organismo, sintetiza, começa por consumir a gordura que é transformada em glicose. “Mas, quando chega à fase de digerir músculos, é mais grave, pode atingir o músculo cardíaco, o miocárdio”. A certa altura, a pessoa pode começar a sofrer de arritmias..

Há uma coisa de que Isabel do Carmo está certa: “Os primeiros dias são os piores”. “O açúcar do sangue baixa. Mas o fígado vai fabricando açúcar. O organismo vai queimando os músculos para sobreviver. Come os músculos. Sinto os músculos a atrofiarem. A produzir açúcar desta maneira diferente, o organismo fabrica acetona. Cheiramos a acetona”, descreve, num texto que fez há alguns anos.

Passados os primeiros dias, o organismo adapta-se e há uma “inversão do metabolismo”. Mas a própria suspensão da greve de fome e a realimentação também levanta sérios problemas. Há o risco de as pessoas terem alterações metabólicas graves, quando se reinicia a alimentação, acentua Davide Carvalho, que destaca também o problema “ético” com que os médicos se confrontam neste tipo de situações. 

Recordando a Declaração de Malta, documento que foi adoptado pela Associação Médica Mundial, em que se defende que a alimentação forçada é inaceitável perante uma recusa informada e voluntária, nota que “em princípio o médico deve respeitar a vontade da pessoa e a alimentação forçada é eticamente inaceitável”.

Mas o médico deve perguntar à pessoa que decide privar-se de alimentos o que pretende fazer “antes dela perder a consciência e explicar-lhe o risco e a irreversibilidade da situação”, sublinha Davide Carvalho, ou perceber se deixou informações escritas. Seja como for, poderá intervir se o objectivo que motivou a greve de forme já tiver sido conseguido.

Em 2013, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, num parecer sobre a alimentação compulsiva de reclusos em greve de fome, concluía que também que estes “mantêm o direito de recusar o tratamento médico, desde que se verifique que têm capacidade de decidir e que têm total consciência das consequências da recusa”.

Durante a greve de fome, Isabel do Carmo lembra-se assim da carta que o pai lhe escreveu e em que aludiu ao drama de Bobby Sands, que morreu aos 27 anos, depois de 66 dias em greve de fome. Em 1981, este activista do IRA entrou em greve de fome reclamando ser considerado preso político, com os direitos inerentes a esse estatuto, mas a primeira-ministra Margaret Thatcher não cedeu. “Ela [Thatcher] tem coração de ferro”, escreveu o pai de Isabel.

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