Em França não se hesita em dar uma palmada a uma criança

Conselho da Europa condena Paris por não proibir de forma clara os castigos corporais a menores

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Nos países que os proíbiram, o recurso aos castigos corporais diminuíu Adriano Miranda/PÚBLICO/arquivo

O Conselho da Europa condenou França por não proibir, de “forma suficientemente clara, coerciva e precisa os castigos corporais” a crianças. Mas Paris não conta mudar em breve a legislação, já que 80% dos franceses, que receberam palmadas – ou até mesmo tareias – dos seus pais em pequenos, são hostis a uma tal proibição.

A falta de uma lei que proíba claramente os castigos corporais a menores em todas as situações é uma violação do artigo 17 da Carta Europeia dos Direitos Sociais, que afirma que os Estados devem “proteger as crianças e os adolescentes contra a negligência, a violência e a exploração”, e da qual França é signatária, afirma o Conselho da Europa – uma instituição de defesa dos direitos humanos, que não está relacionada com a União Europeia.

Mas a secretária de Estado da Família, Laurence Rossignol, garante que não está no horizonte do Governo socialista francês mudar a lei. “O país deve fazer uma reflexão colectiva sobre a utilidade das punições corporais na educação das crianças”, disse à AFP. “Mas isso não passará pela lei, para não dividir o país em dois campos: os que são pela palmada e os que são contra.”

A governante considera que o Código Civil tem os dispositivos suficientes para garantir o respeito pela integridade física das crianças e adolescentes. “Mas persiste uma tolerância baseada no costume, a do direito de correcção, que é aceite desde que seja ligeira e tenha um fim educativo”, disse Rossignol ao jornal Le Monde.

Só que, reconheceu, essa noção de “ligeireza” é relativa, e não pode ser avaliada de maneira objectiva. E a grande maioria dos especialistas é da opinião que a violência não tem funções educativas.

“Quando os pais usam a violência, a criança endurece. O corpo não compreende se a intenção é ou não educativa. A criança adquire o gesto. Aprende a violência pelo exemplo”, disse ao Le Monde Olivier Maurel, um antigo professor que é um dos chefes de fila da campanha anti-castigos corporais em França. Além disso, 50% por cento das palmadas ou bofetadas são dadas a crianças com menos de dois anos, que não têm capacidade para compreender o seu significado.

Uma análise a 88 outros estudos feita em 2002 e publicada na revista científica Psychological Bulletin revelou uma relação entre o acto de ser sujeito a castigos corporais na infância (excluindo os casos de maus-tratos) e uma maior agressividade mais tarde, a degradação dos laços com os pais, um aumento dos comportamentos desviantes e uma propensão superior a maltratar os seus próprios filhos na idade adulta, recorda o Le Monde. “Quanto mais frequentes forem os castigos, maior é o risco destas situações surgirem”, concluía a principal autora deste estudo, Elizabeth Gershoff, professora de psicologia na Universidade de Austin (Texas, EUA).

Apesar de tudo isto, França continua a ser um reduto da popularidade da palmada ou mesmo da tareia. Na campanha para as eleições presidenciais de 2007, o centrista François Bayrou deu uma bofetada a um miúdo que lhe estava a mexer nos bolsos no meio de uma multidão – e isso valeu-lhe um aumento de popularidade.

Nas escolas francesas, é já proibido usar castigos corporais contra os alunos. Mas em casa, nas famílias, continua a vigorar a ideia de que os pais têm esse direito sobre os seus filhos. E há a ideia de que a autoridade parental está em crise: legislar sobre o assunto aumentaria essa sensação de angústia na sociedade, ainda por cima se resultasse do impulso de uma instituição internacional, diz o Le Monde. Além do mais, a queixa que suscitou a deliberação do Conselho da Europa foi apresentada por uma organização não-governamental estrangeira, a Approach.

Os opositores aos castigos corporais apelam no entanto a uma interdição clara na lei, que se tornaria numa forma de fazer pedagogia junto dos pais, e não de os penalizar. Estudos comparativos mostraram que nos países que adoptaram a proibição, mesmo sem que entrassem em vigor sanções, o recurso aos castigos corporais baixou.

Em 2014, havia em todo o mundo 44 países que proibiam os castigos corporais sobre crianças. Portugal é um deles, desde 2007, ano em que entrou em vigor o novo Código Penal, mas também chegou a ser alvo de críticas pelo Conselho da Europa, em 2006, quando um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça sustentou que dar uma palmada ou estalada faz parte da educação de uma criança. "Ao ler-se a sentença fica-se com a sensação de que se recuou no tempo", comentou a então secretária-geral adjunta do Conselho da Europa, Maud de Boer-Buquicchio, considerando que o texto encoraja os pais e educadores “a cometer actos de violência”.

Hoje, entre os 47 membros do Conselho da Europa, 27 interditam os castigos corporais. A Suécia foi o primeiro país a proibir as punições físicas, em 1979, seguida de outros países do Norte da Europa e pelos países do antigo bloco de Leste, nos anos 1990.

Vários países da América Latina, como o Brasil e a Argentina, deram esse passo na mesma altura que Portugal, bem como algumas nações africanas logo a seguir, como o Togo ou o Quénia. A Nova Zelândia foi o primeiro país anglófono a proibir os castigos corporais. Continuam a ser autorizados no Reino Unido e em 19 estados norte-americanos. 

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