Em Ciudad Juarez, a guerra mortal pelo controlo do narcotráfico acabou

Funeral de uma das vítimas da violência em Juarez, em 2006
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Funeral de uma das vítimas da violência em Juarez, em 2006 Tomas Bravo/Reuters
Militares e especialistas forenses examinam um cadáver deixado à porta de uma discoteca
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Militares e especialistas forenses examinam um cadáver deixado à porta de uma discoteca Alejandro Bringas/Reuters

Nas ruas desta cidade foram deixados 10.500 cadáveres, vítimas de uma guerra entre gangues que terá sido ganha pelo cartel de Sinaloa. Os habitantes começam a tentar reconstruir a vida.

Quando esta cidade era uma onde mais assassínios eram cometidos em todo o mundo, a morgue ficou superlotada, com os cadáveres empilhados até ao tecto nas salas refrigeradoras. Os médicos legistas faziam uma dúzia de autópsias por dia, de galochas, enquanto as famílias das vítimas esperavam lá fora, em número suficiente para fazerem fila.

O México enfrentou uma das mais ferozes campanhas de homicídios da história recente, que deixou 10.500 mortos nas ruas de Ciudad Juarez, numa guerra sem tréguas entre duas poderosas máfias da droga e do crime. O pico foi em 2010: registaram-se pelo menos 3115 homicídios violentos, e em vários meses houve mais de 300 mortes, segundo o jornal El Diário.

Mas a febre parece ter passado. Em Julho, foram mortas apenas 48 pessoas - 33 a tiro, sete por espancamento, seis por estrangulamento, e duas esfaqueadas. Destes mortos, as autoridades consideraram que 40 estão ligados a rivalidades criminosas e ao tráfico de droga.

As autoridades atribuem a diminuição dos homicídios aos seus esforços - patrulhas do Exército, prisões, novas escolas para manter os jovens afastados dos gangues e nas aulas.

"El Chapo" venceu

No entanto, os mexicanos suspeitam de que há outra razão, mais credível, para a redução da violência: o barão da droga mais procurado do mundo, Joaquin Guzman, "El Chapo", e o seu cartel de Sinaloa conquistaram o controlo do narcotráfico local e das rotas de contrabando em direcção ao norte.

Ciudad Juarez sempre foi um campo de batalha crucial na guerra contra a droga levada a cabo pelo Presidente Felipe Calderón, agora em fim de mandato, com o apoio dos EUA. Foi ali que Calderón despejou 8000 soldados e polícias e milhões de dólares em ajuda ao desenvolvimento, numa vaga ofensiva comparada por especialistas em segurança com a dos EUA no Iraque

Como parte da Iniciativa Mérida, um pacote de 1600 milhões de dólares, o Governo norte-americano financiou a criação de academias da polícia na cidade, incluindo treino em "sobrevivência nas ruas" para polícias sem mãos a medir. Os EUA também forneceram microscópios para laboratórios forenses, enviaram líderes políticos, de segurança e comunitários à Colômbia para verem como o país combate a violência, ajudaram a criar uma linha telefónica de denúncias anónimas e apoiaram programas para jovens em risco.

Calderón diz que os homicídios no México estão a diminuir, mas como o seu Governo se recusa a divulgar os dados concretos, as dúvidas persistem.

Juarez ainda é uma cidade vulnerável. A violência diminuiu e os soldados e a polícia federal começaram a abandonar a cidade. Os habitantes rezam para que a paz relativa se mantenha, enquanto milhares de famílias que fugiram para o Texas para escapar à violência se interrogam se já é seguro voltarem para casa.

Nos tempos mais ferozes, quando esta cidade industrial fronteiriça na margem sul do rio Grande parecia estar a ser consumida por uma loucura homicida, a taxa média de homicídios era quase nove por dia. Mas, em Julho, baixou para 1,3, a mais baixa taxa de mortes violentas desde que a guerra entre os cartéis de Sinaloa e de Juarez explodiu em 2007.

"Agora é um jogo completamente diferente", explica Hector Murguía, o presidente da câmara. "A nossa cidade já não é uma cidade de fantasmas."

As famílias voltaram a comemorar os aniversários em restaurantes. À noite, alguns clientes já se arriscam a ir às cantinas do centro da cidade, antes uma zona proibida depois de anoitecer. A recessão já passou, e as maquiladoras (fábricas de montagem), que pagam cerca de 13 dólares por dia, estão a operar a bom ritmo. Segundo a câmara municipal, já foram criados cerca de 20 mil empregos.

Para responder à crise que empurrou Juarez para o abismo, o Governo Federal construiu escolas em bairros pobres onde não havia nenhuma, e centros comunitários, parques infantis e centros de saúde. Atribuiu bolsas de estudo e seguros de saúde e deu dinheiro e material - novas carrinhas e armas maiores - aos polícias municipais, que há alguns anos não eram apenas empregados das organizações criminosas mas também os seus gestores.

O secretário do Interior mexicano, Alejandro Poire, visitou recentemente a cidade para enaltecer os feitos de Calderón - uma redução de 50% na taxa de homicídios comparada com o mesmo período no ano passado, e de 70% em relação a 2010.

No entanto, os críticos da estratégia do Governo sublinham que o antigo governador do estado de Chihuahua, onde fica Juarez, foi alvo de uma investigação federal por alegadas ligações ao crime organizado.

Apesar de ser retratada como uma guerra pelas lucrativas rotas de contrabando de droga para os EUA, as autoridades policiais dizem que as batalhas entre os cartéis de Sinaloa e Juarez foram menos devido ao voraz apetite por drogas da América e mais sobre o controlo de Juarez.

"Na minha perspectiva, a violência teve origem na venda e no consumo de droga aqui na Ciudad Juarez; foi o que motivou o estalar da crise", disse o procurador Cesar Peniche.

Estima-se que existam milhares de pontos de distribuição de droga em Juarez quando os cartéis entraram em guerra. Alguns especialistas dizem que quando se tornou mais difícil fazer entrar a droga nos EUA, as máfias começaram a pagar às pessoas com produto, o que terá feito aumentar o consumo em Juarez, onde uma dose de heroína se vende por cinco dólares, o preço mais baixo da América do Norte. Dizem os promotores públicos que os cartéis deram rédea solta aos seus exércitos para cercarem a cidade.

No topo estavam os líderes - como Gúzman - que nunca tinham posto os pés em Juarez. Os combatentes eram esquadrões paramilitares, que incluíam ex-polícias e polícias no activo, centenas de criminosos de rua, traficantes e clientes, assim como adolescentes pobres que abandonaram a escola e a quem era emprestada uma arma por algumas horas.

Após milhares de mortes e de prisões, as autoridades mexicanas dizem que o cartel de Juarez, o inimigo de Gúzman, se tornou numa sombra do que era. Um comandante militar diz que o cartel de Juarez está com dificuldade em pagar aos seus membros. E os promotores públicos dizem que a organização não consegue recrutar, não tem armas, veículos ou dinheiro. Fontes do departamento antidroga mexicano dizem que ambos os cartéis ficaram debilitados na guerra, mas que o de Guzmán ficou em vantagem.

A polícia criminosa

A acirrar a violência estiveram dois gangues descritos como hiper-agressivos, os Assassinos Artísticos e os Aztecas, e dois líderes locais que adoptaram a estratégia do extermínio mútuo até serem capturados, no ano passado.

Jose Acosta, "El Diego", do cartel de Juarez, foi apanhado com a intervenção dos serviços secretos. Terá ordenado a execução de 19 toxidependentes. O seu igual no cartel de Sinaloa era Noel Salgueiro, "El Flaco", preso pelos militares e acusado de torturar e matar os irmãos do procurador-geral estadual - a sua confissão foi publicada no YouTube.

A tornar tudo ainda mais grave, a polícia municipal formou um grupo chamado A Linha, que trabalhava para o cartel de Juarez. Em 2008, um terço da polícia foi despedida ou demitiu-se, devido a laços com os grupos criminosos; foi uma das muitas tentativas de limpar a casa.

A polícia federal também não ficou de fora. Em 2010, 250 agentes amotinaram-se contra o comandante de Juarez, acusando-o de colocar armas e droga na posse de suspeitos para lhes extorquir dinheiro. "Não acredito. Não acredito que a polícia federal fizesse isso. Conheço-a pessoalmente", diz um construtor de Juarez que permanece na cidade; outros dez mil encerraram.

Mas os relatórios das organizações de direitos humanos dizem que até os soldados mexicanos se envolveram em prisões ilegais, colocando provas falsas e torturando suspeitos. "Sim, os militares prenderam muita gente, mas legalmente não podemos acusá-los. A maior parte dos detidos por eles foram libertados", diz Arturo Valenzuela, um médico que dirige o projecto Nós Somos Juarez, uma parceria entre organizações civis e o Governo. "O Exército nunca foi grande ajuda".

No auge da violência, a arma de eleição foi a AK-47. Os ataques eram feitos em lugares públicos. As mortes aconteciam a horas de aparecerem nos telejornais. "Lembro-me de cenas de crime em que contávamos 300, 400 invólucros de balas, de armas diferentes, disparadas por vários atiradores contra múltiplas vítimas", diz David Garcia, director do centro médico de Chihuahua e médico legista de Ciudad Juarez.

Os investigadores acabavam o turno de 18 horas perturbados, como soldados em combate que assistiram a cenas demasiado duras.

Muitos assassínios - sobretudo de polícias ou advogados do Estado - pareciam trabalho de profissionais, que chegavam usando máscaras e coletes à prova de bala, patrulhavam a zona, encurralavam a vítima e asseguravam uma rota de fuga.

"Limpeza social"

Este ano, mais homicídios foram cometidos com armas de menor calibre, por exemplo pistolas de 9mm. Dispararam-se menos tiros e as cenas foram menos espectaculares. As decapitações já não são vulgares. Muitos dos mortos foram assassinados previamente, antes de serem abandonados na rua. É raro ver-se uma emboscada profissional.

Julian Leyzaola, chefe da polícia municipal, diz que os grupos criminosos estão a fazer uma espécie de "limpeza social", ao eliminarem os traficantes rivais, os especialistas em extorquir dinheiro e os raptores.

As autoridades policiais dizem que muitas das 10.500 vítimas terão sido perseguidas e executadas. "Noutras zonas do México há verdadeiros confrontos entre grupos rivais. Há tiroteios e, às vezes, morrem cidadãos inocentes apanhados no fogo cruzado. Mas aqui em Juarez os atiradores não se confrontavam directamente. Os assassinos matavam os membros menos importantes do outro lado", diz Jorge González, o procurador de Chihuahua encarregado de Juarez. O El Diario mencionou que a maior parte das vítimas estaria desarmada.

Durante o auge da violência, muitos corpos que foram parar à morgue não foram reclamados. Foram sepultados em valas comuns, desconhecem-se os seus nomes e os dossiers com os seus casos engrossam as pilhas nas secretárias dos investigadores, que só conseguem fazer chegar aos juízes quatro casos em cada cem.

Houve 580 homicídios em Ciudad Juarez nos primeiros sete meses de 2012, e a cidade está longe do objectivo de ser a mais segura do México. As organizações criminosas que levaram Juarez ao fundo não desapareceram. "O que se passa", diz Peniche, "é que os grupos estão a ir para outras zonas do estado".

Com Gabriela Martinez

Exclusivo PÚBLICO/Washington Post
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