Dupla candidatura búlgara suscita desconcerto nas Nações Unidas

Moscovo demarca-se de qualquer envolvimento na estratégia da Bulgária e diversos países membros do Conselho de Segurança pedem clarificação à Bulgária.

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Reuters/BRENDAN MCDERMID

A existência formal de duas candidaturas búlgaras ao cargo de secretário-geral das Nações Unidas suscita desconcerto em Nova Iorque. À candidata Irina Bukova, directora-geral da UNESCO e apoiada, numa primeira fase, pelas autoridades de Sófia e pelos socialistas búlgaros, sucedeu-se a candidatura, na quarta-feira, da comissária europeia do Orçamento e Recursos Humanos, Kristina Georgieva, com o apoio da Alemanha de Angela Merkel, do presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, e do Partido Popular Europeu (PPE). Angola, Malásia e Uruguai, membros não permanentes do Conselho de Segurança, solicitaram aos búlgaros uma clarificação de posições. Mais importante foi a postura de Moscovo: a Federação Russa, membro permanente do Conselho de Segurança, manifestou surpresa pelo facto e afirmou nada ter a ver com esta candidatura.

“Quero sublinhar que esta decisão nada tem a ver connosco, é uma decisão do Governo búlgaro e gostaria muito que esta decisão fosse uma decisão soberana”, considerou Mariya Zaharova, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros russo. A declaração de Zaharova é repleta de significado. Aquela responsável veio à praça pública com um propósito: “Quando surgiram especulações de que a Rússia estava envolvida na mudança da candidata búlgara, a nossa posição é clara: não participamos nesta estratégia, ou em jogos por detrás das cortinas.”

O Kremlin não apenas se distancia de qualquer participação no volte-face da opção búlgara. Considera, mesmo, assim o deixou claro a porta-voz oficial da diplomacia de Moscovo, que se trata de uma operação de bastidores, “por detrás das cortinas”. Uma referência suficientemente forte que tem dois destinatários: a chanceler Merkel e a Alemanha, que com a candidatura de Georgieva tentaria que Berlim viesse a integrar o lote de países com representação permanente no Conselho de Segurança (França, China, Estados Unidos, Reino Unido e Rússia), que passaria de cinco para seis Estados; e Bruxelas, com a qual os russos têm um contencioso sobre as sanções impostas pela União Europeia devido à intervenção militar na Ucrânia (Georgieva foi, na UE, a responsável pela aplicação das sanções à Rússia).

O facto de Bukova ter mantido, nas últimas 72 horas, a sua candidatura, destacando que não há regras que a forcem a abandonar, provoca um caso atípico na ONU. “Queremos apenas clarificar se temos uma candidata ou duas”, sintetizou o embaixador da Nova Zelândia nas Nações Unidas, presidente em funções do Conselho de Segurança. “O que temos é uma candidata com o apoio oficial do Governo búlgaro (Georgieva) e outra candidata [da mesma nacionalidade – Irina Bukova] que permanece na corrida”, explicou Gerard van Boehamen, que apoia a candidatura da sua compatriota Helen Clark, administradora do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas.

A opinião deste diplomata, a clarificação solicitada por Angola, Malásia e Uruguai e a demarcação russa traduzem o descontentamento perante Sófia. Em linguagem diplomática, tal é referido como “incidente”, que obrigará as autoridades búlgaras a esclarecimentos nas vésperas de Kristalina Georgieva se apresentar, na segunda-feira, num “diálogo informal” para defender os seus pontos de vista na ONU. Esta candidata "saltou" as votações a que foram submetidos os outros candidatos a secretário-geral, entre os quais o português António Guterres que saiu vencedor dos cinco escrutínios já realizados  o que provoca suspeitas num processo lançado com princípios de transparência.

No documento da sua visão sobre o futuro das Nações Unidas de pouco mais de quatro páginas, Georgieva aborda três questões principais: a manutenção da paz e segurança; desenvolvimento, alterações climática (ainda esta sexta-feira o China Daily citava os elogios da candidata aos esforços do Governo chinês para limitar a emissão dos gases com efeito estufa), direitos humanos e liderança do secretário-geral. Trata-se de uma apresentação sucinta sob o princípio genérico que a ONU “deve acompanhar os tempos num mundo em mudança, renovar a sua importância e ajudar as pessoas mais necessitadas”. Esta formulação é justificada pela sua "condição de mãe e avó” e pela sua experiência como comissária europeia da Ajuda Humanitária e Protecção Civil, com Durão Barroso, e do Orçamento e Recursos Humanos, na actual presidência de Juncker.

Na apresentação da sua entrada na competição, Georgieva lançou críticas a António Guterres. “Guterres afirma que o sistema está falido, não se desintegrou, mas a verdade é que se desintegrou e muito”. Na base desta afirmação está a demarcação das posições do antigo alto-comissário para os Refugiados, que defende a necessidade de haver  mais fundos para o desempenho da ONU, sobretudo no apoio aos refugiados. Ora, para a economista búlgara, essa não é a condição indispensável para solucionar os problemas.

A “1 for 7 billion”, que reúne 750 organizações não-governamentais – entre as quais a Amnistia Internacional e a Federação das Associações de Comércio Internacional, e personalidades como o antigo secretário-geral da ONU, Kofi Annan – insistiu que Kristalina Georgieva fosse submetida ao mesmo processo de selecção por que passaram os outros candidatos. Na segunda-feira, em duas horas, entre as 11h e as 13h de Nova Iorque (mais cinco horas em Portugal Continental), numa sala de imprensa das Nações Unidas, tem lugar o denominado “diálogo informal” – uma entrevista à candidata.

Dois dias depois, o nome de Georgieva passará directamente para a lista que vai a votação no Conselho de Segurança. Nesta fase do procesos de escolha do sucessor de Ban Ki-moon, o voto dos cinco membros permanentes é identificado com uma cor embora não seja possível atribuí-los individualmente.

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