Donald Trump está a chegar

O novo Presidente americano iniciou este fim-de-semana umas mais do que merecidas “férias” no estrangeiro, que o retiraram do caldeirão interno em que está envolvido e que precisa que lhe corram bem para restituir algum fôlego à sua presidência.

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1. Num artigo publicado na Foreign Affairs enquanto decorria a campanha presidencial de 2000, Condoleezza Rice defendia uma visão para a política externa americana na qual a democracia, com os seus valores, teria de ter um papel fundamental. Rice era vista como a voz de George W. Bush em matéria de política externa, e a sua “professora-em-chefe”. Estávamos ainda a viver o remanso do pós-Guerra Fria. Bill Clinton era criticado pelo establishment mais conservador da política internacional por ter transformado a América numa espécie de “assistente social” do mundo, como dizia Kissinger.

Quando foi eleito, Bush considerou que o papel dos EUA não era reconstruir nações e prometeu mais “humildade” no exercício do poder americano. Mal sabia ele que teria de reconstruir umas tantas. No artigo, a sua conselheira nacional de Segurança e, depois, secretária de Estado do segundo mandato (com a missão de corrigir boa parte dos erros cometidos no primeiro), dizia que estavam reunidas as condições para acabar com a velha prática segundo a qual a América tinha de distinguir entre os “sons of a bitch” e “our sons of a bitch”. A Arábia Saudita, uma velha aliada da América, pertencia à segunda categoria, naturalmente.

Como sabemos, o 11 de Setembro mudou tudo. Derrubar ditadores e mudar regimes passou a ser, na prática, a doutrina oficial. O resultado foi o que se sabe. Condoleezza acaba de publicar um livro cujo título é justamente Democracia, que vai contra tudo aquilo que actual Administração de Trump parece defender, pelo menos nos dias pares. O que ela diz é que os valores não podem estar dissociados da política externa americana sob pena de a descaracterizar, acrescentando que as palavras são muito importantes. O seu sucessor, Rex Tillerson, explicou recentemente aos funcionários do Departamento de Estado que não é útil passar a vida a falar de democracia, retirando-a das prioridades da política externa. Ninguém se lembra de Trump ter utilizado a palavra “democracia” desde que chegou à Casa Branca. Obama utilizou-a como um instrumento fundamental da sua política externa, mas desviou-a da ideia de que a mudança de regime pela força pudesse alguma vez ser uma solução. Estendeu a mão a Cuba e a Teerão. Privilegiou as forças especiais e os drones no combate ao terrorismo. Manteve-se afastado de outra guerra no Médio Oriente. “America First?”, pergunta Walter Russell Mead numa revisão do livro de Rice. “Não, diz Condoleezza Rice.”

2. O novo Presidente americano iniciou este fim-de-semana umas mais do que merecidas “férias” no estrangeiro, que o retiraram do caldeirão interno em que está envolvido e que precisa que lhe corram bem para restituir algum fôlego à sua presidência. O itinerário é longo e complicado. A ideia de visitar os lugares santos das três grandes religiões poderia ser interessante, caso o Presidente não tivesse antagonizado deliberadamente uma delas, ao ponto de restringir a entrada a pessoas oriundas de sete países islâmicos. Quer remediar essa má impressão. A visita ao Papa destina-se sobretudo a imprimir uma boa fotografia. Francisco já o criticou publicamente por causa dos imigrantes e dos refugiados e Trump devolveu-lhe as críticas dizendo que não era nada com ele. A forma como trata os mexicanos e os hispânicos não pode ser bem vista por Francisco, que também não pode esquecer que seis em cada dez católicos brancos americanos votaram no actual Presidente. Não podiam ser mais distintas as personalidades de ambos e os valores que defendem. 

3. Na NATO e no G7, duas cimeiras sucessivas em Bruxelas e na Sicília, os seus aliados europeus já trataram de organizar uma coreografia que evite o mais possível a imprevisibilidade que caracteriza este Presidente. São, mesmo assim, dois testes fundamentais sobre a aliança transatlântica e a defesa do livre comércio. Como escrevia ontem o New York Times, está tudo preparado para “conversas de 30 segundos e não de 30 minutos” e para memorandos de uma só página. As reuniões serão curtas. A agenda foi construída para dar a ideia de que a NATO já está a cumprir as suas recomendações, nomeadamente sobre o combate ao terrorismo, como se fosse uma novidade. “O terrorismo já é uma prioridade da NATO há 14 anos.” A Europa entrou em pânico quando Trump fez campanha elogiando o “Brexit”, demonizando a Alemanha e declarando a NATO obsoleta. Corrigiu o tiro: “Disse que era obsoleta e agora digo que não é obsoleta.” O chefe do Pentágono e o secretário de Estado já desbravaram terreno. A única coisa que os aliados querem é garantir que os EUA continuam empenhados na segurança europeia, porque sabem até que ponto precisam deles. Temem que a desestabilização interna da sua presidência crie um vazio de poder que abra as portas à China ou a Rússia mais do que seria conveniente para a segurança internacional. Receiam que a sua relação problemática com Putin ponha em causa as sanções aplicadas desde a ocupação da Crimeia. Têm apenas um objectivo: que o Presidente faça uma referência ao Artigo 5.º do Tratado de Washington. Vão levá-lo a inaugurar uma estátua de homenagem às vítimas do 11 de Setembro, para lhe lembrar que foi a única vez que a defesa mútua foi accionada. A favor dos americanos. Mas isso será no dia 25.

4. Hoje o Presidente está em Riad, onde o regime saudita lhe preparou uma recepção triunfal. A monarquia saudita fará qualquer coisa para recuperar o apoio americano na “guerra” pela hegemonia regional contra o Irão, que vê como o grande beneficiado regional da política de Obama. Acusa o anterior Presidente de ter deixado cair Mubarak e de não ter acabado com o regime sírio. Os seus diplomatas insistem numa agenda comum: combate ao terrorismo, derrota de Damasco, isolamento de Teerão. Trump concorda. Recuperou uma velha ideia que nenhum dos seus antecessores quis concretizar: a criação de uma espécie de “NATO árabe”, incluindo os países da região com regimes sunitas e próximos dos EUA, de forma a aliviar o esforço de segurança que os americanos lhes garantem e pôr o Irão em xeque. A ideia será testada durante um encontro a que Riad chamou “Cimeira Árabe, Islâmica e Americana” e que reúne mais de 50 países muçulmanos, do Egipto ao Paquistão. Trump vai fazer um discurso sobre o islão (imitando Obama) cujo teor ainda é desconhecido, mas que é visto como um exercício altamente arriscado. E leva na bagagem um pacote de mais de 100 mil milhões de dólares de venda de armamento aos sauditas. Obama vendeu-lhes 120 mil milhões. “Os sauditas exportaram mais ideologia extremista do que outro qualquer sítio à face da Terra”, disse à porta fechada Hillary Clinton, no seu papel de secretária de Estado.

5. A parte mais delicada da viagem é, porventura, o seu passo seguinte: Israel e a Palestina. O primeiro-ministro israelita e o presidente da Autoridade Palestiniana já o visitaram na Casa Branca e Trump prometeu-lhes a ambos  uma bela amizade. Encontrará de novo Netanyahu e Abbas para discutir um acordo de paz em que nenhum está particularmente interessado, preferindo manter o statu quo. A resolução do conflito israelo-palestiniano, antes tida como a fonte de todos os males, passou a assunto secundário depois da guerra na Síria. Mas Trump quer provar a sua capacidade de fazer “bons negócios” também na política e o seu último “brinquedo” parece ser a obtenção de um acordo — que não conseguirá, se continuar a dizer que muda a embaixada americana de Telavive para Jerusalém e que a cidade santa é a eterna capital do Estado judaico. Irá ao Yad Vashem, o memorial aos 6 milhões de judeus do Holocausto, mas apenas por meia hora.

Não há memória de um presidente americano merecer tanto cuidado e tanto nervosismo na sua primeira visita ao estrangeiro. Não há memória de um presidente tão impreparado e tão imprevisível como este. E problema é o mesmo: lidera o país mais poderoso do mundo. Para aliados e para inimigos, o facto é da maior relevância. 

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